A presidente do Banco Alimentar, Isabel Jonet, faz, em entrevista à Renascença e ao diário "Público", o balanço da última campanha que, por não ter podido contar com voluntários, recolheu menos toneladas de alimentos do que era habitual.
Isaebl Jonet deixa alertas sobre riscos de exclusão social e agravamento das condições de habitação. A presidente do Banco Alimentar mostra-se, ainda, preocupada com as consequências do ensino à distância na exclusão social e defende abertura de todas as escolas no próximo ano lectivo. Chama também a atenção para a "estigmatização" de certos bairros sociais.
Que balanço que faz da campanha do Banco Alimentar (BA) “Ajude a preencher este vazio”? Preencheu?
Este apelo foi muito correspondido por quem doou alimentos através do site e dos vales mas também através de milhares de donativos. Fizeram-nos falta os nossos voluntários. Foi a primeira vez que não tivemos a presença física de voluntários, os 42 mil voluntários na rua que convidam as pessoas que vão às compras. Ainda falta que as cadeias de distribuição nos enviem os resultados finais dos vales, mas os resultados são animadores. A campanha na Internet mais do que duplicou: foram recolhidas mais de 180 toneladas. Mas nada disto é comparável com as quase 3 mil toneladas de alimentos que eram recolhidas fisicamente.
Quantas pessoas por dia procuram o BA?
Em Fevereiro, tínhamos 380 mil pessoas que eram ajudadas pelos 21 BA através de uma rede de 2600 instituições. De um dia para o outro, isto tudo mudou. Há muitas famílias que ficaram com as suas vidas viradas do avesso. Um conjunto larguíssimo de pessoas ficou impedido de trabalhar e ficou com os filhos em casa. Tivemos uma dupla pressão na sociedade. Agora, tinham que estar em casa, não tinham dinheiro e tinham que alimentar os filhos que deixaram de comer na creche, no infantário ou na escola. No dia 20 de Março, lançámos a rede de emergência alimentar para que não falhasse a ajuda a estes 380 mil (a maioria, em situação de pobreza estrutural) e ajudasse as 60 mil pessoas a mais que se vieram juntar, pessoas que ficaram sem emprego e que ficaram em layoff e ainda não receberam.
Esta crise revelou novas bolsas de dificuldades? Em que regiões e em que sectores?
Ainda estamos para ver as consequências totais, mas trouxe no imediato bolsas grandes de pobreza nas regiões a que já estamos habituados, Lisboa, Setúbal, o Algarve, o Grande Porto. Trouxe uma pobreza conjuntural muito severa e nunca tínhamos tido em Portugal, nem no tempo da crise de 2009/2010. Atingiu famílias que não estavam habituadas a lidar com esta situação, famílias mais novas com crianças em casa, provocando uma maior exclusão social até no acesso à educação. Estas famílias tinham que ter os filhos a frequentar aulas que obrigavam a ter computador, Internet e espaço em casa para as crianças poderem estar. Isto trouxe uma clivagem no acesso à educação, que é um direito absolutamente fundamental. Não haveria alternativa? Talvez não houvesse, mas é urgente reparar esta situação que vivemos hoje. Isto vai ter consequências muito graves no próximo ano lectivo. Temos crianças que puderam acompanhar as aulas quase de forma pacífica e temos outras crianças que não puderam de todo.
Que devia ser feito agora? O Governo já anunciou que o próximo ano lectivo deve ser dual, com aulas presenciais e à distância.
Deixo o alerta que esta situação de clivagem no acesso à educação deve ser olhada de forma realista e com muito cuidado. Não há hipótese de estas crianças frequentarem o ensino. Então, o que temos que fazer? Mais vale abrir as escolas e perceber que os efeitos a longo prazo serão muito superiores ao eventual risco [de saúde pública] que pode existir. A situação dos pais destas crianças não está resolvida nem estará. Tudo isto vai demorar muito tempo tal como vai demorar muito tempo à economia a pôr-se em marcha ao ritmo necessário para permitir que estas famílias voltem a ter a sua situação equilibrada. Uma situação conjuntural de pobreza como esta tem que ter medidas excepcionais. Estas famílias e estas crianças têm que ser apoiadas de forma integral para que não se sintam excluídas. Quando se diz que este foi um vírus democrático, não foi nada democrático. Embora os vírus e as doenças possam matar os ricos e os pobres, os mais vulneráveis são as pessoas que vivem em condições piores, andam de transportes públicos, os filhos não têm acesso a computador. Numa altura de emergência, estas pessoas têm que ser ajudadas e quem tem que ajudar é o Estado, é a sociedade civil e a ajuda deve ser quase um a um porque todas estas famílias são diferentes. Temos desde os feirantes aos higienistas, desde os motoristas de táxi a personal trainers, empregadas domésticas, sector cultural.
O alargamento do rendimento mínimo garantido pode ser uma solução?
Sim, é preciso dar dinheiro às pessoas até para gerar riqueza na economia. Tem que se ajudar as pessoas, dando verbas com os controlos que sejam necessários embora no início é preciso aligeirar [o controlo]. É preciso, por exemplo, que todas as pessoas que já requereram a situação de lay-off ou apoios e que estão desesperadas há três meses à espera possam ter acesso a isto até para terem balões de oxigénio que gerem alguma esperança. Também é bom não esquecer que, em Portugal, temos 4,5 milhões de pensionistas. Há aqui um conjunto de pessoas que podem ser consumidores que também se pode ajudar a dinamizar a economia. Hoje, só se fala dos fundos [europeus] que vão vir mas não podemos estar só a falar do ouro do Brasil quando a caravela ainda está a meio do oceano. É urgente ajudar hoje pessoas que estão em situação de emergência.
Quantas pessoas são?
Já falei com a ministra do Trabalho sobre um programa que já aí está e que com facilidade se pode rapidamente ajudar desde que os serviços aceitem as ideias de quem decide e que não combatam com uma certa passividade algumas medidas que podem ser tomadas. Estou a falar do fundo europeu de apoio aos carenciados, cujas regras têm que ser revisitadas. Já foi alargado mas pode ser muito melhor aproveitado para levar esta ajuda de emergência. Só não muda de ideias quem as não tem. Em Portugal, há 1 milhão de pessoas que vive com menos de 250 euros por mês e dois milhões que vivem com menos de 450 euros por mês. Agora, houve muitos que ficaram com zero.
O que pensa sobre o facto de se divulgarem os locais onde há surtos de covid-19 quando esses locais são bairros sociais ou bairros ilegais? Isto não estigmatiza as pessoas que foram afectadas pelo vírus e que antes já tinham sido afectadas pela pobreza?
Não só estigmatiza como dá um medo tremendo, o que pode dar lugar a uma grande insegurança. Não podemos deixar, de maneira nenhuma, que se gere insegurança social.
Houve irresponsabilidade da parte dos políticos?
Não há irresponsabilidade. Os políticos sentem uma necessidade de estar constantemente a revelar números e dados continuamente até pela pressão mediática. Este grau de transparência é excessivo. A pouco e pouco, há que criar uma imunidade colectiva que nos permita seguir em frente e abordar o próximo Inverno e não pode haver pessoas estigmatizadas.
O gestor António Costa Silva está a fazer, a pedido do Governo, um plano para a recuperação da economia. Se ele viesse falar consigo, que alertas lhe faria para ter em conta no seu programa?
Gostava imenso que ele viesse falar comigo e que visitasse um bairro social comigo para saber o que é preciso não descurar: as pessoas que querem pertencer de forma integral e como agentes activos na sociedade e muitas vezes estão impedidas porque nem sequer estão legais e têm que trabalhar na clandestinidade. Esta crise afectou imenso as pessoas da economia informal. Temos uma economia informal fortíssima que ninguém quer ver.
Estes bairros estão a aumentar ou a diminuir?
A aumentar muito. Na margem sul, com a subida de rendas, os bairros muito difíceis e degradados, como o Segundo Torrão que teve um acréscimo do número de barracas muito substancial. Voltou a haver barracas em Lisboa porque as pessoas tiveram que largar a sua casa e vivem em condições muito precárias.