A Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN) considera que há medidas do Plano Nacional de Combate à Pobreza que "correm o risco de já não serem atuais".
O plano que deveria ter sido apresentado até final de abril, acabou por ser apresentado e publicado em Diário da República na última terça-feira.
"É inconcebível gastar o salário mínimo em habitação”, diz, em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, Elizabeth Santos, do Observatório de Luta Contra a Pobreza da EAPN.
"Não podemos aceitar que um salário mínimo sirva todo ele para pagar a habitação”, reforça.
"A proteção social ainda está a falhar na capacidade de prevenir situações de precariedade", diz também Elizabeth Santos, lembrando o custo de vida e a crise na habitação para falar de "um contexto explosivo" com efeitos muito negativos no aumento da população em situação de sem-abrigo.
A coordenadora do Observatório de Luta Contra a Pobreza da EAPN afirma que "Portugal é dos países em que as prestações sociais têm menos impacto na prevenção das situações de pobreza” e alerta para o risco de os populismos prejudicarem o acesso de algumas pessoas às medidas de proteção social.
Elizabeth Santos defende ser necessário "blindar as medidas" inscritas no Plano Nacional de Luta Contra a Pobreza das "ideologias que possam existir nos territórios para garantir que todas as pessoas tenham acesso" às medidas de proteção.
A responsável diz que "para ter vontade política" na luta contra a pobreza "é preciso compreender a pobreza não como uma despesa, mas como um investimento".
“Nós ainda não temos a capacidade de perceber a questão da pobreza como um problema de todos e de toda a sociedade. É uma mudança de mentalidade que tem de acontecer”, reforça.
Elizabeth lamenta a dificuldade que Portugal revela em baixar os números da pobreza: "Nunca descemos dos dois milhões de pessoas em situação de pobreza ou exclusão social."
"É importante um maior conhecimento sobre o que é a pobreza, porque ainda há muitos mitos, ainda há muitos preconceitos, ainda há muita tendência de culpabilizar as pessoas pela situação que vivem.”
A estratégia de combate à pobreza inclui um conjunto superior a 270 medidas e a sua coordenadora garantiu, em entrevista à Renascença, que se trata de um processo dinâmico, podendo o governo ser obrigado a adotar outras ações que não estão previstas. Encontra desde já a necessidade de se atualizar o plano?
Há, de facto, algumas medidas que correm o risco de já não serem atuais. Uma delas é, por exemplo, o acordo que foi feito para o aumento do salário mínimo. Esse acordo é importante, é importante garantirmos uma negociação e um acordo que permita, ao longo do tempo, aumentar o valor do salário mínimo nacional. Mas, tendo em conta o aumento do custo de vida, da inflação, dos juros, aquilo que é o encargo com a habitação, por exemplo, pensarmos em 900 euros em 2026, será, com certeza, muito pouco para melhorar, de facto, a qualidade de vida das pessoas.
Quanto mais deveria ser?
Deveria ser muito mais. Isso depende também, obviamente, de como aumentar o preço das habitações. Neste momento, já encontramos T1 a 900 euros. Não podemos ter um salário mínimo em que todo ele é para pagar a habitação, porque isso é inconcebível.
Por isso, tem que haver aqui um equilíbrio entre as políticas para a habitação, para conseguir garantir preços que correspondam aos salários que existem em Portugal, juntamente com perceber como evolui a inflação e os juros, para perceber como é que temos que aumentar o salário mínimo.
Agora, tem que ser uma atenção: não podemos ficar satisfeitos com o valor de 900 euros para 2026.
A habitação tornou-se num autêntico flagelo na sociedade portuguesa, em particular para os mais vulneráveis. É preciso ir mais longe na busca de soluções para estas pessoas?
Sem dúvida nenhuma. Estamos perante um contexto em que o problema da habitação está a afetar todas as pessoas. Mas temos, por exemplo, a taxa de sobrecarga. Se olharmos para a taxa de sobrecarga do custo de habitação, o valor é 5 por cento. Parece ser muito pouco, não é? Mas temos que pensar que, em Portugal, mais de 70% das pessoas vivem em casa própria. E mais de 40% vivem em casa própria sem custos com habitação. Já está pago o crédito. Por isso, quando analisamos essa taxa, tem impacto perceber qual a quantidade de pessoas que não têm custos com habitação.
Quando olhamos depois para grupos específicos, essa taxa de sobrecarga aumenta claramente. Pensando, por exemplo, nas famílias monoparentais, ela passa para 14%. Se pensarmos nas famílias compostas apenas por um indivíduo, ela passa para 10%.
Por isso, há grupos que estão a viver com uma intensidade muito maior o aumento da habitação e as pessoas abaixo do nível de pobreza estão a sentir isso, o que faz com que entrem ou sejam remetidas para habitações com piores condições de vida, com humidade, com outros problemas que vão ter impacto e problemas de saúde, por exemplo.
As famílias com filhos constituem uma grande preocupação. São as que têm maior atrasos no pagamento de rendas, no pagamento de água, luz, serviços, taxa de sobrecarga. Há um conjunto de outros indicadores em que essas famílias vivenciam situações muito mais precárias.
Não estamos a saber resolver o problema e temos uma polémica à volta das medidas definidas pelo governo que em nada ajudará na procura de soluções...
Sim, nós precisamos, em Portugal, de caminhar para consensos, consensos a nível do combate à pobreza e da solução dos problemas.
Ainda não temos a capacidade de perceber a questão da pobreza como um problema de todos e de toda a sociedade. É uma mudança de mentalidade que tem de acontecer. Nós temos que compreender que, quando falamos em pobreza, não falamos de um problema dos pobres, mas de um problema da sociedade.
A causa não está nos pobres, está no funcionamento da sociedade e o problema tem que ser resolvido por todas as pessoas. Tem que haver um envolvimento de todos, seja em questões específicas, como habitação, seja na questão da pobreza. Temos que criar consensos e temos que ser capazes de trabalhar soluções que vão às causas da pobreza e que não se limitem a trabalhar os sintomas.
Essa necessidade de consensos passa também por identificar e criar medidas que possam ajudar a superar a tendência que temos visto de promover políticas avulsas no combate à pobreza?
Sim, exatamente. A necessidade de uma estratégia vem daí. Vem da necessidade de pensarmos aquilo que pretendemos no combate à pobreza a médio e a longo prazo e pensarmos que medidas podem ajudar a atingir isso.
Essa é a importância de termos uma estratégia, mesmo que depois tenha que ser atualizada. Porque uma estratégia é uma estratégia, um plano é um plano, não é? Tem que mudar, consoante evolui a sociedade, consoante evoluem os contextos.
Mas insisto: termos esta perspetiva do que queremos enquanto sociedade é importante. E esta estratégia traz-nos metas claras e mais do que isso traz-nos o envolvimento de todos os ministérios. Essa é uma dos aspetos patentes no plano: ações definidas por todos os ministérios. É claro que alguns com envolvimento muito maior do que outros, mas estão ali. Isso é também uma mudança de mentalidade. Temos também, por exemplo, a necessidade de ouvir as pessoas em situações de pobreza. Isso também é uma mudança de mentalidade no combate à pobreza.
Ou seja, que os beneficiários sejam sujeitos também das ações, não é?
Exatamente. Não serem apenas os beneficiários das ações, mas terem uma voz e poderem ajudar a avaliar o impacto que as medidas estão a ter na vida deles e ajudar a pensar que medidas são necessárias.
E pode ter também um impacto positivo a proximidade das pessoas que podem ajudar? Entre as medidas da estratégia está a possibilidade de haver um gestor local para o problema de cada pessoa...
Sim. Há essa preocupação de trazer para o terreno não só nessa medida, mas numa outra que depois podemos falar que é de promover estratégias locais a nível municipal de combate à pobreza.
Isso é importante: territorializar. Porque os territórios são diferentes, têm necessidades diferentes. No caso desses gestores, tanto quanto foi dito até agora, tanto quanto se sabe até ao momento, tem esta perspetiva de intervenção integrada, de olhar para a família e ver todas as necessidades em vez dessas famílias terem que percorrer os labirintos da proteção social, que são difíceis de percorrer, que são muito burocráticos. Ter alguém que ajude e facilite neste processo é importante. Obviamente que, como em tudo, o diabo está nos detalhes. Temos que ver como é que vai ser implementado. Primeiro, com que recursos, porque nós já tivemos essa experiência no Rendimento Social de Inserção e no Rendimento Mínimo Garantido, sobretudo.
Tínhamos rácios de família por técnico muito elevados, o que impossibilitava qualquer tipo de acompanhamento. Se voltar acontecer o mesmo, a medida vai fracassar. Por isso, esta é uma medida importante. Também é importante garantir que as pessoas possam avaliar, possam perceber e fazer uma avaliação. É um projeto-piloto e é importante que essa avaliação tenha a voz das pessoas.
Será feita uma monitorização anual?
Espero que sim. Pelo menos, é um projeto-piloto e o objetivo dos projetos pilotos é esse. Depois, há um outro risco de que também importa falar: é necessário evitar que ideologias que possam existir nos territórios influenciem o acesso ou não acesso ou o melhor ou o pior acesso. Sabemos que está a crescer o populismo, sabemos que há uma perspetiva, uma leitura da pobreza muito específica em alguns desses partidos e, por isso, é importante garantir que, independentemente de quem está à frente dos municípios, todas as pessoas tenham acesso de qualidade a esse tipo de proteção.
Entre as medidas anunciadas, as que se direcionam para o apoio à infância são as que podem ser mais eficazes na tentativa de quebrar o ciclo da pobreza?
Há um enfoque importante em quebrar o ciclo da pobreza e um enfoque importante no combate à pobreza infantil. Há, por exemplo, o aumento do abono, há o aumento da garantia para a infância... Não é dito que aumento é esse... Também há uma perspetiva de intervenção mais integrada... Ver-se-á como é implementado. Como disse, a forma como é implementada influencia muito os resultados que vamos ter.
Outra população vulnerável é a que se encontra em situação de sem-abrigo. Anunciam-se datas para a solução definitiva do problema, mas a realidade mostra que essa população tem aumentado. A pergunta que se impõe fazer é: onde se está a falhar?
Estamos a falhar. Estamos a falhar na capacidade de proteger as pessoas, no caso da habitação. A falta de habitação e o preço da habitação estão a ter um impacto importante nas novas situações de sem-abrigo. Vemos cada vez mais pessoas que estão inseridas no mercado de trabalho e que, mesmo assim, acabam por viver em carros ou em situações muito precárias e, por isso, esta dimensão não pode ser separada. Depois, a nível da proteção social, nós temos uma proteção social que tem um impacto muito pequeno no combate à pobreza. Por exemplo, se pensarmos nas prestações de desemprego, de saúde, exclusão social, família...
... perpetuam esse ciclo de pobreza?
Quando olhamos para a taxa de pobreza, elas diminuíram em 24% a taxa de pobreza, mas a nível da média europeia diminuíram em 36%. Portugal é dos países onde as prestações sociais menos impacto têm na prevenção de situações de pobreza, porque a maior parte dessas prestações tem valores muito baixos. O RSI está muito distante do limiar de pobreza. Todas essas medidas, a maior parte delas, estão distantes. Mesmo a nível, por exemplo, do desemprego. Nós temos mais de 50% dos desempregados que recebem subsídio de desemprego com valores inferiores a 500 euros, quando o limiar de pobreza é de 551 euros. Por isso, a proteção social ainda está a falhar na capacidade de prevenir situações de precariedade e quando juntamos a isso o aumento do custo de vida e toda a crise da habitação, temos um contexto explosivo.
O cenário é de aumento das taxas de juros, aumento de valores praticados no arrendamento, por causa da pressão turística e outros motivos. É de prever um agravamento da situação?
Sim, a situação está a agravar-se. Os dados da pobreza, os dados oficiais não mostram isso, porque os dados da pobreza têm especificidades: olham sempre para o passado, não conseguem olhar para o presente. Estamos em outubro e os dados que temos ainda reportam ao inquérito de 2022 e aos rendimentos de 2021. Ou seja, é um contexto totalmente distinto daquele que vivemos atualmente.
Quando olhamos, por exemplo, para a pobreza monetária, este indicador trabalha especificamente o rendimento que recebemos, o rendimento que temos e comparamos com o valor do rendimento da população. Não é aqui visto o que se faz com esse dinheiro. Não tem qualquer impacto do aumento do custo de vida. E isso é importante, porque a estratégia tem em conta esses dados oficiais. Por isso, corremos o risco de aproximarmos das metas de combate à pobreza quando na realidade temos uma situação que é oposta daquela que os dados nos apresentam.
A Rede Europeia Anti-Pobreza lançou um vasto conjunto de iniciativas para sensibilizar a sociedade e os políticos para a real dimensão da realidade da pobreza. Há mesmo vontade política em enfrentar o problema?
Para ter vontade política é preciso compreender o combate à pobreza não como uma despesa, mas como um investimento. E eu não sei se esta mudança já ocorreu. Se pensarmos, por exemplo, na pandemia, houve um conjunto de medidas que foram feitas para tentar lidar com pessoas que perderam de imediato todo o seu rendimento, mas essas medidas não tiveram qualquer impacto no limiar de pobreza, no número de pessoas em situação de pobreza, porque o valor era de facto muito baixo.
Ainda não temos essa capacidade de compreender que uma pessoa que nasce na pobreza e que vive na pobreza tem piores situações de saúde, que vai recorrer mais vezes às urgências, que não vai ter uma alimentação saudável... Isso vai ter impacto na forma como faltam ao emprego ou na forma como se cuida de crianças com problemas e incapacidades. Nada disso é visto como um impacto da pobreza e nada disso é analisado como um investimento. Se conseguirmos olhar de uma outra forma para a pobreza e compreender quais são as causas, teremos melhores resultados.
Essas soluções estão no relatório que, recentemente, a EAPN apresentou?
Nós apresentamos, todos os anos, um relatório que faz esta leitura da pobreza, muito com base nos dados oficiais. E o relatório permite-nos ver como se está a evoluir, porque, de facto, ao longo dos anos, mantemos mais ou menos os mesmos grupos, sendo os grupos vulneráveis. Temos alguns grupos que pouco diminuíram o seu risco de pobreza. Se pensarmos, por exemplo, nos desempregados, desde 2015 até agora, a exclusão social deles nunca baixou dos 60 por cento.
E quantos são hioje os trabalhadores que estão também no limiar da pobreza ou em pobreza?
Esta é outra questão. É que os desempregados podem ser aqueles que têm maior risco, mas a maior parte das pessoas em situação de pobreza são trabalhadores.
A percentagem é de 10%?
A percentagem é de 10%, se pensarmos na pobreza monetária, que é uma dimensão específica. É de 12% se alargarmos o conceito e pensarmos em pobreza ou exclusão social. E, se pensarmos na população que está em situação de pobreza e pensarmos nos adultos, que obviamente podem estar inseridos no mercado de trabalho, vemos que quase metade desses adultos estão inseridos no mercado de trabalho e trabalham o tempo inteiro. Não se trata de uma questão de trabalhar em "part-time" e não ter rendimentos específicos. Trabalham a tempo inteiro. O que acontece é que esse rendimento é baixo e não permite ter um filho ou ter um cônjuge que, por algum motivo, não possa estar a trabalhar.
Um em cada cinco portugueses ou residentes em Portugal correm risco de pobreza, atualmente?
Sim, a taxa de pobreza é 20%. A verdade é que nunca descemos dos dois milhões de pessoas em situação de pobreza ou exclusão social. Ao longo de todos esses anos de combate à pobreza, temos tido muita dificuldade em baixar significativamente este número.
Os dados sobre os quais estávamos a falar são do passado, não têm em consideração, ainda plenamente, o impacto da guerra na Ucrânia, o impacto da inflação e, mais recentemente, o impacto do conflito entre Israel e o Hamas. Devemos preparar-nos por um cenário ainda pior do que aquele que estamos a viver?
O cenário não é positivo, de facto. Para não terminarmos com um tom negativo, sabemos que o cenário não é positivo, mas eu acho que o mais importante e a mensagem que deixava aqui é a da necessidade de pensarmos todos que somos responsáveis por este combate à pobreza. Este envolvimento de todos, da comunicação social, dos empresários, dos professores, dos médicos, de toda a sociedade no combate à pobreza é aquilo que pode de facto criar mudança. Para isso é importante que haja maior conhecimento sobre o que é a pobreza, porque ainda há muitos mitos, ainda há muitos preconceitos, ainda há muita tendência de culpabilizar as pessoas pela situação que vivem sem compreender que obstáculos têm nos seus processos de vida, sem compreender quais são as causas, como é que é difícil para algumas pessoas entrarem no mercado de trabalho às vezes simplesmente porque têm 55 anos e estão desempregados. Coisas que a pessoa não pode alterar, a sua idade. Por isso, há várias causas que são estruturais e temos de olhar todos, como responsáveis pelo combate à pobreza, para conseguirmos aqui alguma mudança.