Há crimes estritamente militares relacionados com o furto de Tancos que não estão a ser investigados por a Polícia Judiciária Militar (PJM) ter sido afastada do caso, afirma o diretor daquela força, Paulo Isabel.
"Há crimes estritamente militares que não estão a ser investigados, ordens que não foram cumpridas. Tanto quanto eu sei não estão a ser investigados porque a única polícia que tem competência é a PJM", disse o comandante Paulo Isabel, ouvido na comissão de inquérito parlamentar ao furto de Tancos, numa audição que durou mais de três horas.
O capitão de mar-e-guerra tomou posse em 2 de outubro do ano passado, substituindo Luís Vieira, que se encontra em prisão domiciliária no âmbito da Operação Húbris, que investigou o aparecimento, em outubro de 2017, na Chamusca, do material militar furtado em Tancos cerca de quatro meses antes.
Paulo Isabel defendeu que a decisão do Ministério Público de retirar à PJM a liderança da investigação, passando-a a para a PJ civil, "foi demasiado radicalizada" porque havia uma dimensão estritamente militar a ser investigada, para além de "descobrir quem fez o furto", que era a de saber "quem é que não cumpriu as normas estabelecidas, quais os crimes militares infringidos".
Paulo Isabel foi confrontado pelos deputados com as acusações do diretor nacional da Polícia Judiciária, na audição realizada na terça-feira na comissão de inquérito, de que a PJM obstaculizou o trabalho da PJ civil.
"O senhor diretor da Polícia Judiciária também disse que isto foi o caso de Tancos. Não é uma prática recorrente na PJM, nem antes, nem depois, e agora certamente que não é", disse Paulo Isabel, frisando que o que aconteceu deve centrar-se em "pessoas em concreto" e que não deve ser confundida a "árvore com a floresta".
O comandante admitiu que "devia ter havido uma melhor coordenação sobre o que é que cada uma dessas polícias fariam", mas considerou que a decisão do Ministério Público de retirar a PJM da investigação -- mantendo-a no papel de "coadjuvante" - teve consequências a vários níveis.
"O que eu faria, com um despacho como o da procuradora-geral da República? Eu não teria dúvidas de que teria de colaborar com Polícia Judiciária, mas faria todo o possível para demonstrar que devíamos continuar a investigar na esfera dos crimes estritamente militares", disse.
O comandante referiu que a "pedra de toque" que gerou o "mau estar na direção da PJM", então liderada por Luís Vieira, começou quando se soube, dias antes da data oficial do despacho da procuradora-geral da República, 7 de julho, que ia ser retirada à PJM a liderança da investigação.
A obstaculização ou a falta de colaboração ao trabalho da PJ "não foi uma questão de funcionamento da PJM, foi de comportamento de pessoas da PJM" que depois saíram daquele órgão de polícia criminal e voltaram aos ramos.
"Houve de alguma forma um melindre por parte de algumas pessoas", disse.
Segundo o diretor, aquela polícia "sempre entendeu que havia lugar à presença da PJM na investigação de crimes estritamente militares, nomeadamente "do envolvimento de militares" no furto, "do que se passou, e era isso que estava a ser feito" até à data em que o processo liderado pela PJM "foi apenso" ao da PJ.
"O que eu sei é que a Polícia Judiciária não está a investigar a factualidade dos crimes militares", insistiu, reiterando que só a PJM tem competência para o fazer.
Questionado pelo deputado do PS Diogo Leão, o comandante Paulo Isabel considerou que a PJM "pode regressar" à investigação dos crimes estritamente militares porque não prescreveram.
Quanto à "encenação" do aparecimento do material militar, envolvendo investigadores da PJM, Paulo Isabel respondeu que o pessoal que trabalha hoje na PJM "sente o seu trabalho manchado".
Desde o "contaminar das provas ao retirar o material de guerra que estava na Chamusca e retirá-lo", disse, "é claro para toda a gente que muita coisa correu mal".
Contudo, afirmou "não ser claro" que tivesse sido a PJM a obstaculizar a entrada da PJ no campo militar de Santa Margarida, para onde foi levado o material descoberto na Chamusca.
Investigador da PJM afastou-se ao perceber que lhe ocultavam informações
O diretor da Polícia Judiciária Militar disse que o investigador que começou por liderar a investigação ao furto de Tancos, capitão Bengalinha, "sentiu-se compelido" a afastar-se ao perceber que havia informações que lhe foram ocultadas.
Segundo o comandante Paulo Isabel, o capitão Bengalinha estava a dirigir a investigação desencadeada naquela polícia ao furto de Tancos e tinha a coadjuvá-lo o major Brazão [arguido no âmbito da investigação ao aparecimento do material], entre outros investigadores.
"Entretanto, e até por sugestão do então diretor da PJM [Luís Vieira, que se encontra com termo de identidade e residência], foi de férias nesse período. Como o major Brazão estava a acompanhar, ficou ele com o caso", relatou.
Quando o capitão João Bengalinha regressou de férias, percebeu que "havia diligências que tinham sido feitas que ele desconhecia e ficou com a sensação que não lhe estava a ser passada toda a informação".
"Aí pediu, e também porque tinha estado com processos muito absorventes como o caso dos Comandos [morte de dois recrutas no 127.º curso] para ser afastado dessa investigação", contou Paulo Isabel.
O furto do material militar, entre granadas, explosivos e munições, dos paióis de Tancos, foi noticiado em 29 de junho de 2017 e parte do equipamento foi recuperado quatro meses depois.
O caso ganhou importantes desenvolvimentos em 2018, tendo sido detidos, numa operação do Ministério Público e da Polícia Judiciária, sete militares da Polícia Judiciária Militar e da GNR, suspeitos de terem forjado a recuperação do material em conivência com o presumível autor do crime.
A comissão de inquérito para apurar as responsabilidades políticas no furto de material militar em Tancos, pedida pelo CDS-PP, vai decorrer até junho de 2019, depois de o parlamento prolongar os trabalhos por mais 90 dias.