O bispo de Setúbal, cardeal D. Américo Aguiar, diz que se verificam “condições sub-humanas” nos estabelecimentos prisionais de Setúbal e do Montijo.
Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, D. Américo alude a um cenário idêntico ao que vemos em "imagens de filmes da América Latina e da África profunda”.
O bispo de Setúbal e presidente da Fundação JMJ Lisboa 2023 promete “gritar bem alto” a dor que sentiu depois de visitar os dois estabelecimentos prisionais.
Nesta entrevista conjunta, a propósito do Dia Mundial da Juventude que se assinala neste domingo, D. Américo Aguiar mostra-se também apreensivo com o rumo politico do país e apela: "Por amor de Deus, não andemos até dia 10 de março a discutir o caso Influencer."
“Preocupa-me muito o que estamos a viver. Tudo está a ser dinamitado. Até parece que está a ser pensado e orquestrado, o que é muito grave."
Em Setúbal, o bispo diocesano diz ter já encontrado “dois grandes problemas", sendo um deles "os picos de violência doméstica". O outro é "o famoso problema da geração nem-nem”.
D. Américo Aguiar afirma que “não podemos perder a oportunidade" que a Jornada Mundial da Juventude proporcionou, importando valorizar a "bênção" de se poder contar com tantos jovens. Neste Dia Mundial da Juventude, o bispo de Setúbal afirma que o "pior que podia acontecer era só termos para os jovens a missa das 11h00, ao domingo".
Sem revelar pormenores o responsável garante que as contas da Fundação JMJ vão produzir noticias "muito boas, do tamanho da Torre dos Clérigos” e reafirma que o “superávite será reencaminhado para projetos da Câmara de Lisboa, da Câmara de Loures e da Igreja”.
A celebração deste Dia Mundial da Juventude, a nível diocesano, ainda com a experiência de agosto tão presente em todos, é uma oportunidade para “reagrupar” forças e lançar novas dinâmicas?
O Papa Francisco, no encontro em Algés, na despedida e encontro com os voluntários, deixou-nos no topo de uma onda. Aliás, ele usou a imagem da onda da Nazaré. Eu não sei como é que isso no surf se chama…
Estamos na crista da onda...
Pronto, não sei se a linguagem do surf é essa, mas seja. Nós não podemos perder esta oportunidade, é o que tenho dito sempre. Os quatro anos de preparação, a envolvência dos jovens - apareceram jovens de todo o lado, debaixo das pedras, nas dioceses mais interiores, nos territórios mais desertos - foi uma surpresa, foi uma bênção, foi uma graça. E o pior que podia acontecer era só termos para os jovens a missa das 11, ao domingo, e mais nada.
Houve uma mobilização muito específica e muito direcionada. Pergunto se, nestes meses, já há um certo sentimento de orfandade?
É misto, depende dos territórios, depende das dioceses, depende das comunidades, depende de qual foi o terreno onde se alicerçou este desafio. Nós temos consciência de que, em muitos sítios, se partiu do zero. Noutros sítios, existia já algum cultivo e noutros sítios apenas foi dar continuidade e dar mais gás, digamos, às coisas. Temos coisas muito diferentes em todo o território - norte, sul, interior, litoral, continente e ilhas. Por isso, a realidade é muito diferente.
O que me tem chegado das dioceses, ainda das estruturas ligadas aos comités paroquiais, vicariais e diocesanos, é que há consciência da importância de não perder a crista da onda. Portanto, cada um no seu território está a tentar não perder estes jovens. Porque muitos destes jovens não estavam ligados a nada, agora ficaram conectados a Cristo vivo, conectados ao Papa Francisco, conectados ao Encontro Mundial. É preciso, agora, pôr o pé na realidade territorial, na comunidade de pertença: uns são universitários, outros não vivem na sua paróquia de origem, outros não praticam ou não têm relações no sítio onde vivem. Este é outro problema: qual é a minha comunidade? É onde tenho morada efetiva, do cartão de cidadão, ou é onde eu me sinto bem a participar?
Até por isso faz sentido que este compasso de espera também sirva para ajustar essas propostas?
Exatamente. Agora, o que me chega do que está a acontecer no terreno é muito positivo.
Esta celebração diocesana é para si uma oportunidade para se encontrar com os jovens de Setúbal. É uma ocasião especial para o bispo?
É muito especial. Primeiro, quero dizer-vos que o encontro da juventude, a nível diocesano, é agora no domingo de Cristo-Rei e foi um filho da jornada Mundial da Juventude de Lisboa, porque o Papa mudou a data, que antigamente era no Domingo de Ramos e era muito complicada para as comunidades. Em Setúbal, ser no Cristo-Rei é jogar em casa, é muito especial ir ao Cristo-Rei estar com os jovens de Setúbal. Eu tenho-os acompanhado na caminhada, vamos dizer, sinodal, de escuta, que eles estão a fazer, eu estou tentado, com eles, a fazer uma espécie de caminhada sinodal até 2025.
Fiquei muito sensibilizado e tocado pelo que vi em Coimbra. O sr. D. Virgílio [Antunes] está a pensar para Coimbra um trabalho com o COD idêntico ao de um Sínodo. Eu acho que vamos por aí, fazer caminho com eles. Temos de abandonar aquela conversa do “vamos fazer coisas para eles”. Não vamos fazer nada para eles, vamos, com eles, fazer o que eles querem.
Penso que essa iniciativa se vai replicar tem muitos sítios, mas não se pode criar uma certa ideia de que há um caminho que é feito escutando, mas que, para quem está envolvido, faltam algumas decisões concretas e algumas mudanças?
Há a tensão do "já" e do "ainda não". Eu tenho consciência e que temos aqui dois pulmões: temos jovens que chegaram, têm muita expectativa, querem conhecer Cristo vivo, querem fazer caminho; temos outros que são eles os protagonistas do testemunho de Cristo vivo. É como a carruagem com várias velocidades: temos de estar prontos a fazer o primeiro anúncio, querigmático, o anúncio de Cristo vivo a quem não conhece, e, ao mesmo tempo, fazer caminho com aqueles que têm já quilómetros de caminhada, de testemunho e de vivência de Cristo vivo. Os maiores evangelizadores dos jovens têm de ser, obrigatoriamente, os jovens. Os Papas vão repetindo sempre isto. Mas há sempre esta tensão, e não é só dos jovens.
Ainda agora com o fim desta primeira sessão do Sínodo. As dioceses, os países… Há uma tensão deste ano seguinte. O que é que vamos fazer? O que é que não vamos fazer? Não vai voltar outra vez à paróquia e ao paroquiano, ao homem e mulher de boa vontade, mas é preciso corresponder, porque, senão, há um sentimento de perda de tempo, um sentimento de vazio. Isso não podemos permitir, porque quebra o ânimo.
Na sua mensagem para este dia, o Papa renova elogios à JMJ Lisboa 2023, afirmando que o encontro “superou todas as expectativas”. É uma mensagem importante, para a Igreja e a sociedade, até pelas dificuldades que se têm vivido?
Sim… Eu sou suspeito de falar das jornadas, mas cada vez mais me convenço de que Portugal fez bem. Portugal, os portugueses, não me canso de repetir, merecem toda a nossa homenagem e gratidão. Os portugueses e Portugal fizeram bem. Todas as áreas, todas as profissões, todos os profissionais privados, públicos, todos, todos, todos. Mesmo as pessoas que não estavam a favor, mesmo as pessoas que estavam um pouquinho zangadas também tiveram o seu papel, tiveram a sua importância, também foram importantes para redesenhar e melhorar os processos. Portanto, é uma gratidão transversal ao país todo.
E isto faz-nos bem, quando quem está de fora, quem é responsável e tem uma visão mundial, reconhece. O Papa, quer na viagem de regresso quer agora, novamente, sublinha sempre essa gratidão e essa avaliação positiva, que, acho, deve ser motivo de alegria para todos os portugueses, todos os envolvidos. Agora, não podemos perder o elã e voltar ao mesmo.
Na última vez que estive com o Papa, ele dizia, até numa mensagem que gravou, que a jornada não deve passar a ser um álbum de fotografias bonito, de uma coisa que aconteceu e acabou. Ora, isso não podemos permitir e temos de ser capazes de, com a experiência que ganhamos, das polícias, das forças de segurança, das forças de saúde, dos jovens, dos megaeventos, da mobilidade, do protocolo, tantos, tantos, tantos jovens que passaram a ter um currículo invejável, naquilo que são até oportunidades de trabalho e de futuro para eles.
Essa avaliação positiva é transversal, mas também há quem procure ainda olhar para aquilo que correu menos bem. Entende esta persistência na busca da polémica quando se fala da JMJ?
Acho que isso é fruto dos tempos que vivemos. Eu respeito, eu vivo bem com a liberdade da expressão, não tenho problema nenhum, absolutamente. Às vezes dói e magoa, é incompreensível, não só nas questões da Igreja como noutras da sociedade portuguesa e até fora das nossas fronteiras e da nossa realidade, essa permanente busca de sarilho, de conflito, alimentar e construir-se por cima das ruínas, dos destroços. Isso não é a minha praia, não é a nossa praia, mas, infelizmente, é a praia de muitos, o que resulta em tantos conflitos mundiais. Às vezes, perguntamos porque há guerra na terra de Jesus, por que há guerra na Ucrânia, porque há guerra no Mali, na República Centro-Africana, no Sudão... As coisas começam assim, quando optamos pela discórdia.
Uma delegação da JMJ Lisboa 2023 vai ser recebida por Francisco, no próximo dia 30 de novembro, no Vaticano. O que significa este encontro? O que espera desse momento?
É cumprir calendário, faz parte da dinâmica do pós-jornada, com pessoas ligadas à Fundação, ao Comité Organizador Local. Nós convidamos dois jovens de cada diocese, de cada comité diocesano, a comitiva dos voluntários, dos trabalhadores, dos empenhados, ultrapassa as 100 pessoas. E também convidamos as empresas, os benfeitores, os patrocinadores, os parceiros. São várias centenas de pessoas que vão agradecer.
Decorreu tudo muito bem e foi tudo espetacular, graças a dois intervenientes e protagonistas especiais: o Papa e os jovens. Eles é que foram os responsáveis por tudo ter corrido bem e tão bem, como vamos testemunhando.
Olhando para a realidade da Fundação, há um momento que é muito aguardado, que é a apresentação de contas. Eu pergunto se ela está para breve e se espera que sejam boas notícias…
Sim, boas notícias serão. Isso aí já podemos partilhar.
E qual é a dimensão da boa notícia?
É muito boa, é muito boa. É do tamanho da Torre dos Clérigos. Nós temos de aguardar até 31 de dezembro, não é uma questão de empurrar com a barriga, são os prazos legais. As contas fecham-se a 31 de dezembro. Depois, nós trabalhamos com a Deloitte, que fará a auditoria dessas mesmas contas, a qual nos diz que entre maio e junho poderá fechar e entregar o relatório da auditoria das contas. Depois, também há um prazo de março, que tem a ver com as responsabilidades das empresas, o primeiro trimestre, que significa faturas que chegam, compromissos legais, bem, essas coisas todas. Mas, a 31 de dezembro, já teremos uma ideia quase total daquilo que é o deve/haver, já saberemos que haverá um superávite que será reencaminhado, como temos dito, para projetos, de acordo com decisão do Governo, da Câmara de Lisboa, da Câmara de Loures e da Igreja.
Mantém-se, portanto, a intenção de trabalhar com o Governo e com as autarquias que estiveram mais diretamente envolvidas, em projetos direcionados especificamente para jovens?
Para jovens. E porquê Lisboa e Loures? Porque são os municípios mais envolvidos, até materialmente falando. É lógico, há projetos que podem acontecer em Loures, em Lisboa e depois podem ser usufruídos por jovens de outros locais. Falamos nos universitários, falamos nas residências, falamos em tantos, tantos projetos que podem acontecer e que, de acordo com estas várias instituições, será dado seguimento.
A JMJ é vista como um exemplo de colaboração entre Igreja e instituições públicas. Acredita que é possível replicar essa colaboração a outros níveis?
Ela acontece no nosso território. Eu trabalhei na Diocese de Porto, na Diocese de Lisboa, agora em Setúbal, percorri o país todo e as autarquias, as entidades públicas, privadas, em todo o país, colaboraram de mãos dadas para que a Jornada acontecesse e até, nomeadamente, aquilo que foram os dias nas dioceses, qualquer coisa de extraordinário, em todo o país. Nós só temos de agradecer e replicar. Em equipa que ganha não se muda. Acho que, no território, devemos continuar de mãos dadas, naquilo que eu disse também em Setúbal: estamos cá para o mesmo, para o bem comum, cada um com as suas competências, cada um com a sua jurisdição, com as suas responsabilidades, mas não faz sentido que, num território, as instituições, os agentes e os protagonistas estejam de costas voltadas ou tomem decisões que não apontam todas para o mesmo, que é o bem comum da comunidade que servimos.
Nesse olhar sobre a realidade sociopolítica, como é que acompanha o atual momento de crise? Teme que haja uma degradação da vida democrática e um aumento do populismo?
Sim, com preocupação, porque é assim. Eu tenho dito isto muitas vezes e volto a dizer.
Aliás, eu tenho currículo, cadastro por ter sido autarca. Primeiro, custa muito que, com muita facilidade, se diga que todos são ladrões e vigaristas e criminosos. Mas isto, infelizmente, acontece quando há qualquer coisa que liga políticos, quando há qualquer coisa que liga padres, quando há qualquer coisa que liga qualquer outro profissional.
Essas generalizações não criam um clima de degradação?
Mas, com certeza, a minha preocupação perceber, na segunda-feira a seguir, quando se dinamita tudo aquilo que é representação, tudo aquilo que é autoridade, tudo aquilo que é serviço público, é quem é que sobra para reconstruirmos o quê e juntos.
Portanto, custa muito e até tenho uma preocupação: com o continuar disto, eu não sei se daqui a cinco ou 10 anos teremos pessoas disponíveis para ser candidatas às juntas, às câmaras, a deputado e ao governo. Porquê? Temos que dizer isto com toda a coragem: os eleitos ganham mal. Os eleitos ganham mal. Aliás, ganha mal quem recebe o salário mínimo e ganham mal muitos outros. Toda a gente ganha mal, com a exceção de poucos. Portanto, os eleitos ganham mal. Não podemos encher a boca e afirmar "ladrões ganham e enchem os bolsos". Os eleitos ganham mal.
Depois, são pessoas, que não trabalham das oito às cinco da tarde. Trabalham 24 horas por dia, sete dias por semana. Depois, as suas famílias sofrem muito. Eu uma vez falei com um autarca que acompanhei, que estava destroçado, porque tinha chegado a casa e os miúdos chegados da escola e perguntaram: "Ó pai, tu és ladrão? É que na escola dizem que tu és ladrão." Isto é inaceitável.
O que é que nós queremos? Como é que nós somos capazes de captar os melhores da nossa sociedade para nos governarem, independentemente de ser direita, de esquerda, do centro, etc. ? Isto não me interessa nada. Aliás, eu tenho amigos em todos os partidos, falo com todos e trabalho com todos para o tal bem comum. Por aí, não vai. Agora, preocupa-me muito o que estamos a viver e não sei quem é o maestro. Quem é o maestro disto? Porque o que é certo é que estamos a dinamitar tudo: são os professores, são os polícias, são os juízes, são os políticos, é a Igreja... Tudo está a ser dinamitado. Até parece que está a ser pensado e orquestrado, o que é muito grave.
Que solução ou soluções preconizaria? Alguns dos argumentos que utilizou são aqueles que teorias mais populistas usam para precisamente denegrir a imagem de quem serve?
Exatamente. O Papa, neste último documento que sucedeu ao Laudato Si, ou que o complementa - a Laudato Deum -, a certa altura diz uma coisa muito interessante, até sobre os ativistas ambientais. Aliás, eu volto a dizer, já o disse aqui na antena, sou contra este tipo de ataques a pessoas com tintas, etc. Acho que um dia isso vai correr mal, vai correr muito mal, quando em vez de tinta for uma faca e quando em vez de uma brincadeira for uma coisa séria.
Eu sou um antigo perigoso ativista ambiental e, por isso, respeito muito, compreendo, mas é preciso condenar este tipo de gestos e dizer-lhes que sejam mais inteligentes e mais inovadores a fazer coisas que não agridam as pessoas.
Mas nesse documento o Papa diz que, com todo respeito por estes jovens, normalmente, ia dizer que eles estão a ocupar um espaço que a cidadania está a desocupar. Porque se nós temos eleições e metade fica no sofá sentado, se nós temos um grande deficite de participação cívica, política, partidária dos cidadãos, depois os lugares são tomados por outros tipos de opções para a sociedade, que também são válidas.
A democracia não pode ser só quando nós achamos bem. Na democracia temos de aceitar, como contrato de Estado, que funciona, seja qual for a opção. Eu olho para a América Latina e preocupo-me muito com opções muito coladas a um lado ou com opções muito coladas a outro. Prefiro sempre soluções que sejam mais transversais, mais englobantes de toda a sociedade. Mas se as pessoas escolhem para um lado ou para o outro, nós temos que respeitar.
É esse o risco de acontecer em Portugal?
Ponto um: os votos são todos iguais. E ainda bem. E é uma conquista de abril, destes 50 anos. Os votos são todos iguais, cada um de nós vale um. E eu acho que isso é importante.
Agora, se alguém está preocupado com os votos de um lado ou com os votos do outro, temos de nos questionar porque é que os cidadãos tomam aquela opção. E isso, sim, isso deve ser um trabalho dos partidos, dos movimentos partidários, de maneira que entenderem qual é o sentido do cidadão, para tomar esta ou aquela opção e agir em conformidade. Porque é assim, vamos lá ver uma coisa: todos queremos mais professores. Eu também. Todos queremos mais médicos. Eu também. Todos queremos mais ordenado. Eu também. Todos queremos mais tudo. Estamos todos de acordo. Como é que isso se faz?
Eu há dias disse: Por amor de Deus, não andemos até 10 de março a discutir o caso Influencer. Até 10 de março, é importante saber o que é que o Chega quer, o que é que o CDS quer, o que é que o PSD quer, o que é que o PS quer, o que é que a CDU quer, o que é que o Bloco de Esquerda quer, o que é que o PAN quer, o que é que a IL quer, e agora não sei se falta algum. Mas o que é que querem? O que é que proponhem aos portugueses, para os portugueses escolherem?
A mim não me importa nada que escolham o que quiserem. Mas que escolham com consciência, com responsabilidade, para onde é que vamos juntos. Para onde é que vamos juntos. Porque se vamos discutir quem é mais simpático, quem é menos simpático, quem faz mais barulho, quem é mais reivindicativo, quem mais é menos sei o quê, acho que chegámos à noite eleitoral e temos um problema matemático para resolver.
Queria olhar um bocadinho agora para a sua nova missão como bispo de Setúbal. Como é que está a correr esta adaptação ao território da diocese?
Está a correr muito bem. Estou a tentar corresponder a uma promessa que fiz, a única, e que era tentar, até dezembro, visitar todos os agentes e protagonistas deste território.
Tenho já uma dor: visitei os dois estabelecimentos prisionais, do Montijo e de Setúbal, e vou ter de gritar bem alto que não se pode privar a liberdade de homens, de cidadãos, de pessoas e tê-las a viver em condições sub-humanas como estão a viver. Visitei o estabelecimento prisional de Setúbal e só me vinha à ideia imagens de filmes da América Latina. E visitei, ontem mesmo, o estabelecimento prisional do Montijo e vinha uma imagem, coisas da África profunda.
Como é que a sociedade vive bem com essa realidade?
Eu fiquei muito triste e, aliás, estou a digerir, porque nós dizemos que acreditamos num sistema de reinserção. Nós acreditamos que um cidadão comete uma falha e cumpre uma pena. Agora não lhe podemos colocar uma pena dupla em cima, que é viver em condições abaixo do limiar da dignidade da pessoa humana. Não podemos permitir isso, mas eu acho que nós permitimos. E depois é aquela coisa que, e permitam-me, isto não é só cristão, isto é humanidade pura e dura, que é: eu sei que quando estamos do lado da vítima, da pessoa que foi assaltada, da pessoa que morreu, da pessoa que foi prejudicada, queremos, nem que seja por segundos, queremos o pior para o criminoso. E quando estamos do lado do amigo, do familiar e não sei o quê, queremos o melhor possível para o criminoso, ou para a pessoa que falhou, para o pecador.
Mas temos que encontrar aqui um ponto de encontro entre aquilo que é a correção, a penalização e aquilo que nós dizemos acreditar no mundo, enfim, moderno, no mundo humanizado, no mundo, enfim, pós-moderno, no mundo... pintem-no lá como quiserem. Mas nós não podemos andar aí a tratar de coisas tão importantes, mas que não me parecem, que sejam tão prioritárias como criar as melhores condições para alguém que está privado da liberdade e que lhe estamos a dizer que durante aquele tempo ele vai ser corrigido, melhorado e vai voltar à sociedade para retomar a sua vida.
As condições que eu encontrei no Montijo e no estabelecimento prisional de Setúbal, com uma uma ressalva porque vi excelentes profissionais, desde a direção da cadeia, passando pelos guardas prisionais, e por todos os trabalhadores são magnífico, aquilo que eu vi dos espaços físicos e de vida, eles são muito, muito, muito, muito abaixo daquilo que nós possamos imaginar como bitola para o respeito pela dignidade da pessoa humana.
Encontramos aqui uma das prioridades do cardeal D. Américo. Outra das suas grandes prioridades será a procura de soluções para os mais vulneráveis, numa região onde ainda é assinalável a pobreza?
Sim, mas Setúbal já não é a fotografia que os portugueses têm gravada dos anos 80, da fome e das bandeiras negras. Felizmente, não é. Há problemas, há dificuldades, mas há muita coisa boa. Aliás, eu já tenho dito, vou começar a falar da "Rive Gauche ". Qual margem sul? "Rive Gauche" é mais gourmet, não é? É estrelas Michelin.
É inaceitável que continuemos a referir-nos negativamente a um território nacional que é exemplar, que dá cartas, que é muito importante e que é decisivo em muitas áreas. E não estou a falar só da AutoEuropa, que é "xis por cento" do PIB. Estou a falar de muitas outras coisas. Portanto, Setúbal, os municípios de Setúbal, a população de Setúbal é muito mais, muitíssimo mais, e tem de ganhar gosto, temos que vestir todos a camisola: os autarcas, as empresas, as pessoas. Temos problemas? Temos. Temos bairros complicados? Temos, mas Lisboa e Porto têm piores.
Portanto, nós não somos os desgraçadinhos e uns coitadinhos, que juntamos ali todo o mal que existe à face da terra. Não. Nós temos capacidade, nós temos vontade, nós temos capacidade instalada, nós temos gente nova, nós temos famílias novas. E também temos problemas. Portanto, temos é que ser capazes de, para grandes problemas, encontrar grandes soluções. E juntos. E é isso que vamos tentar fazer.
Nestas visitas, estive com os representantes da UGT e da CGTP e encontrei outros dois grandes problemas graves. Um é o dos picos de violência doméstica. Eu não sei se isto está transversal ao país, mas aqui são-me sinalizados números além do que possa ser expectável.
E o outro, a famosa malta do "nem-nem": nem trabalha, nem estuda, nem tem formação. São pessoas numa faixa etária 18-30. Ora, isto é um desafio que nós, Igreja, e nós sociedade civil e os eleitos, temos que olhar com especial enfoque, porque é uma fase da vida decisiva para construir o futuro.