Hindus, muçulmanos, sikhs, jains, budistas e cristãos. A Índia é um verdadeiro jardim exótico de variedade religiosa e um local onde a espiritualidade e a devoção parecem fazer parte da paisagem.
Mas onde existe grande diversidade existe também grande potencial para conflito e a Índia aí também não é exceção.
Os principais problemas verificam-se entre hindus – de longe a maioria, com quase 80% da população – e muçulmanos, que na Índia são cerca de 14%, o que em termos brutos representa cerca de 200 milhões, ou seja, o mesmo que no Paquistão. Mas os cristãos, que no país inteiro não chegam aos 3%, também são frequentemente vítimas de perseguição.
A situação tem chamado a atenção de organizações não governamentais que trabalham no campo da liberdade religiosa, como é o caso da fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) que no seu relatório de 2021 pintou a Índia a vermelho, indicando que é um país onde os níveis de perseguição são graves.
“É um país onde há perseguição religiosa e onde as minorias religiosas têm tido a vida muito dificultada, com muitas perseguições, muita discriminação, e é de facto um país que no nosso relatório descrevemos como a acompanhar, onde as perspetivas não são animadoras e os últimos anos têm sido dramáticos em termos de liberdade religiosa”, explica à Renascença Catarina Bettencourt Martins, diretora da AIS em Portugal.
Os problemas variam, desde agressões, violações e homicídios de fiéis ou missionários, frequentemente encobertos pelas autoridades locais, a uma perseguição mais institucional, visível nas leis anticonversão que existem em vários estados e que penalizam quem procura convencer alguém a trocar de religião.
Problema de castas
As autoridades hindus acusam os missionários cristãos de tentarem seduzir muitos indianos a adotar o Cristianismo, oferecendo-lhes assim uma saída do sistema de castas, que apesar de ilegal continua a vigorar socialmente no país. A conversão seria assim vista como uma possibilidade de ascensão social.
Catarina Bettencourt Martins confirma que existe muito trabalho missionário entre os membros das castas mais baixas, ou os que nem sequer estão no sistema de castas e são por isso considerados “intocáveis”, como os dalits e os tribais. Os cristãos negam fazer este trabalho meramente com interesses proselitistas, mas sim como mandamento evangélico de promover os direitos dos oprimidos.
“A Igreja na Índia tem desempenhado um papel extraordinário, é um país que continua a viver um regime de castas, em que estas são todas muito bem definidas e temos milhões de pessoas, das castas mais baixas, os dalits e tribais, e muitos deles, com o trabalho dos missionários têm de facto sofrido melhorias positivas na sua vida, porque estes missionários que trabalham mais concretamente com esta comunidade e têm melhorado a educação e têm-nos ajudado a sair do seu ciclo de pobreza que continua de geração em geração.”
“Portanto a Igreja é muito bem-vista junto destas pessoas e daí também depois os jovens quererem seguir o caminho destes missionários que os ajudaram a sair deste ciclo de pobreza. Essa é uma das justificações para esta Igreja tão viva e com tantas vocações”, diz.
O resultado tem sido, de facto, um crescimento assinalável da Igreja Católica – e outras confissões cristãs – na Índia, onde igrejas, conventos e seminários estão por regra cheios, ao ponto de o país se ter tornado “exportador” de padres e religiosos para o Ocidente, onde existe uma crise de vocações.
Padre Stan, preso por “terrorismo”
Um dos casos mais graves envolvendo perseguição a um membro da Igreja Católica nos últimos tempos é o da detenção do padre jesuíta indiano Stan Swamy, que foi preso por alegadas ligações a um grupo terrorista.
Aos 84 anos, e com graves problemas de saúde, o padre Stan está atrás das grades há mais de seis meses e só agora viu o Supremo Tribunal ordenar que lhe seja feito um levantamento do seu estado de saúde.
Em declarações à Renascença, o padre José Maria Brito, diretor de comunicação dos Jesuítas em Portugal, explica que a verdadeira razão pela detenção do padre Stan é o seu trabalho social junto dos tribais no estado de Bangalore.
“O contexto em que foi preso o padre Stan Swamy parece-me que teve claramente mais a ver com a atividade dele relativamente à questão dos direitos humanos, nomeadamente aos direitos dos tribais, e sobretudo pela consciência que foi criando em líderes destas comunidades, sobretudo líderes mais jovens, dos seus próprios direitos e como é que podiam defender-se de expropriações injustas, entre outras coisas.”
“Ele e um grupo de 15 pessoas que também estão detidas foi mais neste sentido, por isso não me parece que no caso dele a questão cristã seja a mais preponderante, ainda que na Índia certamente que a questão da liberdade religiosa é uma questão muito séria”, explica o padre jesuíta, dando como exemplo leis recentes que discriminam contra muçulmanos em processos de naturalização e asilo para refugiados, incluindo dos rohingya, que chegam à Índia vindos do Myanmar, onde são perseguidos.
Nacionalismo Hindu aumenta
Se a situação religiosa na Índia sempre teve uma boa dose de tensão, o problema só agravou nos últimos anos com a ascensão do partido BJP, do primeiro-ministro Narendra Modi, que tem por política a promoção do nacionalismo hindu.
Modi e os seus seguidores fazem questão de enfatizar que o hinduísmo é a verdadeira religião do subcontinente indiano e quer através de políticas oficiais, quer pela retórica, têm possibilitado um agravamento da perseguição de cristãos e membros de outras religiões minoritárias, sobretudo muçulmanos.
“A Índia tem tido nos últimos anos um Governo que tem alimentado este ultranacionalismo, que defende que a Índia é uma nação inerentemente hindu. Uma das conclusões que retirámos deste relatório, com base em todos os factos que foram analisados, é que de facto as minorias religiosas, incluindo cristãos e muçulmanos, têm tido a vida muito dificultada, com algumas leis a serem aprovadas nos últimos anos, nomeadamente as leis anti-conversão e de mudança de cidadania, que vêm no sentido de as minorias terem cada vez um lugar de menor destaque na sociedade, passam a ser minorias quase sub-humanas, porque são tratados como se não fossem cidadãos, são cidadãos de segunda.”
“Todas estas leis têm como único objetivo transformar a Índia numa nação hindu. O termo usado no nosso relatório é ‘sombrio’. Não se perspetiva, de momento, uma melhoria significativa das minorias religiosas na Índia.”
A reunião de líderes entre a Índia e a União Europeia, a realizar-se no Porto, é por isso uma oportunidade que as instituições europeias não devem perder para pressionar Modi e mostrar que o Ocidente está atento aos atropelos aos direitos humanos.
Catarina Martins começa por lembrar que não é só a sua organização que está preocupada. “Os Estados Unidos também colocaram a Índia como país de especial preocupação porque há sinais muito claros de que o próprio estado, as forças governamentais, os militares, os polícias, todo este conjunto de pessoas muitas vezes ignora esta perseguição, fechando os olhos aos crimes.”
“Portanto seria muito importante que neste caso a União Europeia fizesse de facto pressão sobre o Governo indiano, no sentido de haver uma maior atenção às graves violações dos direitos religiosos que estão a acontecer na Índia, mas também dos direitos humanos, que estão a acontecer na Índia, e esta seria uma oportunidade para a União Europeia falar com o Governo e fazer alguma pressão, mas de facto nos últimos anos não tem sido feita essa pressão e por isso continuamos a assistir a este descalabro, esta violência e esta perseguição contra as minorias religiosas na Índia”, acusa.
Kerala, onde o BJP não manda
A Índia é um país muito grande e há muitas realidades no seu interior. De todos os estados que existem, Kerala é um caso curioso, tendo a mais antiga comunidade cristã do país, que antecede longamente a chegada dos portugueses.
Os cristãos são cerca de 20% da população de Kerala, os muçulmanos perto de 25% e os hindus apenas pouco mais de 50%, uma proporção bastante inferior ao país em geral. Aqui, a regra histórica tem sido a convivência pacífica.
M., um cristão de Kerala que se encontra há vários anos em Portugal, explica que tinha muitos amigos de diferentes comunidades religiosas quando vivia na Índia e que mesmo em Portugal é assim, entre a diáspora. E dá o exemplo das recentes eleições estaduais, nas quais o BJP, de Narendra Modi, não conseguiu eleger um único deputado.
“Quando eu cresci, na Índia, nunca me senti discriminado. Pelo contrário, sentia-me privilegiado, tínhamos uma vida muito boa”, diz, preferindo não ser identificado dada a delicada situação política no seu país.
M. confirma que os problemas no resto do país começaram a agravar-se com as políticas de Modi e sobretudo com a força que ele deu à RSS, um movimento radical hindu que se assumiu como uma espécie de braço armado do partido BJP.
Onde existem mais problemas, explica, é no norte e nordeste do país, mas mesmo aí por vezes o grande inimigo é a desinformação. “Às vezes ainda recebo mensagens, algumas das quais circulam há anos, sobre ataques iminentes, grupos armados que vão destruir igrejas e matar cristãos, e estas mensagens não são verdadeiras. Isto é muito perigoso, porque num país onde existe muita ignorância e as pessoas não são educadas, é muito fácil estas mensagens espalharem o pânico e levarem até a represálias de parte a parte”, conclui.
Narendra Modi não vai estar presente em Portugal para a reunião de líderes que se realiza no sábado, dia 8 de maio, mas participará por videoconferência. Chegou a estar agendada para essa data uma cimeira ao mais alto nível, mas esta foi adiada, segundo explicou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, até que possa ser presencial.
Narendra Modi teve de cancelar a sua vinda à Europa por causa da grave crise pandémica que o país está a atravessar neste momento.