Portugal está muito abaixo da média europeia de despesa pública feita pelas autarquias e tem situações como a dos bares de praia que têm de ser licenciados pelo Ministério da Defesa ou do Ambiente, consoante estejam na areia ou na muralha. O Governo quer alterar esta situação e, em entrevista à Renascença, o ministro adjunto, Eduardo Cabrita, explica o processo de descentralização que está em curso, assumindo que a prioridade é o consenso e que, se for preciso, há ideias socialistas – como a eleição directa dos presidentes das áreas metropolitanas – que podem esperar por 2021.
Eduardo Cabrita também assume que há coisas que não vale a pena discutir como a colocação centralizada de professores.
O Governo apresenta a descentralização como a grande reforma que quer fazer e aprovou nesta quinta-feira uma lei-quadro para a transferência de competências. De que estamos a falar quando falamos de descentralização?
Esta reforma é classificada no programa de Governo como uma grande reforma de Estado, ao lado da modernização simplificação administrativa. Estamos a falar de, após quatro décadas de democracia, 40 anos depois das primeiras eleições democráticas para as autarquias locais, darmos um verdadeiro cumprimento àquilo que é estabelecido no artigo 6º nº 1 da Constituição da República: uma estratégia de afirmação do Estado assente no princípio da subsidiariedade, no princípio da descentralização democrática da administração pública e da autonomia local. Não por qualquer fetiche ideológico, mas percebendo aquilo que se passa na generalidade dos países mais desenvolvidos.
Dê alguns exemplos concretos
Múltiplos. Entendemos que uma intervenção mais alargada dos municípios ou das freguesias melhorará a qualidade de vida das pessoas. Se cruzarmos aquilo que é o funcionamento da escola básica ou secundária com o funcionamento de equipamentos desportivos, de bibliotecas, de equipamentos culturais, só o município pode aqui, numa gestão de proximidade, garantir as melhores sinergias entre este tipo de respostas existentes a nível local.
Se falarmos de outros tipo de questões, algo que faz parte da nossa vida neste país com um magnífico clima, temos uma situação totalmente absurda: relativamente ao espaço que é a praia, um bar de bar, se for na areia é licenciado pelo Ministério da Defesa, assim como a vendedora de Bola de Berlim ou a colocação de toldos, se for em cima da muralha é pelo Ministério do Ambiente, mas se for do outro lado da avenida já é pela câmara municipal.
Obviamente, isto não faz sentido nenhum, é necessário aqui nós termos uma dimensão de proximidade para se distribuir o que são grandes questões, princípios, regras que têm de ser nacionais, daquilo que é uma gestão de proximidade.
Relativamente a cada questão, é preciso identificar qual é o melhor nível para que as decisões sejam tomadas com mais sentido, nalgumas questões será o nível nacional, noutras será o nível regional ou intermunicipal, noutras será o município, noutras a escala adequada até pode ser a freguesia.
Olhando para algumas destas competências - e o exemplo que deu das praias é muito claro e questionamos: como é que é possível que isto ainda não esteja descentralizado?
Há uma mistura de inércia administrativa acumulada, uma tradição muito de minifúndio administrativo, de defesa das extremas de cada um, uma mentalidade rural que se transportou ainda para um país de urbanização tardia.
O que queremos é que, se a questão é nacional é o governo, o conselho de ministros decidirá e fará os entendimentos que forem necessários entre as várias áreas; se estivermos a falar ao nível de todo o Algarve é o nível regional que decidirá qual a melhor forma de dar resposta, a nível de comunidade intermunicipal. Por exemplo, ensino artístico ou ensino profissional, obviamente não haverá em todos os concelhos, não faz sentido, mas tem sentido que seja ao nível de todo o Algarve, ou de todo o Alto Minho, que se decida entre quem lá está: vamos lá equilibrar como é que ali há uma escola de mecânica, ali há outra que dá hotelaria e turismo…
Assim também se poderá rentabilizar mais os meios?
Racionalizar, permitindo uma melhor gestão dos recursos públicos. Pôr funções deste tipo numa autarquia local garante não só dá proximidade de decisão, mas também transparência na decisão, garante um escrutínio porque não há sector mais sujeito do que este aquilo que é a interacção dos cidadãos, que sabem quem é, onde mora, a que café vai, batem à porta, exigem... em última análise avaliam no final do mandato, nas eleições seguintes.
Dois dos sectores em que vai haver descentralização são a saúde e a educação, dois mega-sectores. Está previsto haver descentralização de competências a nível do pessoal não docente, no caso da educação, a nível das infra-estruturas, mas os professores, a colocação de professores, os médicos ficam de fora deste esquema. Porquê?
Tem a ver com o nosso modelo de organização de políticas públicas. No caso da saúde, com uma situação ainda de carência, que tem de ser gerida centralmente e, por isso, aprovamos muito recentemente mecanismos de incentivo à fixação de médicos no interior. O Estado tem de garantir a igualdade de oportunidades e isso justifica aqui a manutenção centralizada, permitindo criar medidas para colocar os médicos onde continuam a fazer falta.
No caso dos professores, também temos uma tradição de concurso de professores. Não é assim em muitos países europeus, mas não vale a pena discutir...
Mas muitos municípios gostariam de poder escolher os professores localmente?
Temos aqui um princípio de concurso nacional que vai ser mantido, temos de fazer aqui um processo gradualista. Somos dos países mais centralizados da Europa, isso é um sinal de subdesenvolvimento, de atraso e descoordenação das nossas políticas públicas. Temos de dar passos graduais, no respeito pela autonomia pedagógica nesta área, transferindo para os municípios tudo o que é a gestão dos equipamentos educativos, o pessoal não-docente, abrindo aqui uma maior flexibilidade na sua gestão, também compreendendo que é necessário às autarquias ganharem experiencia e a comunidade educativa ter uma relação mais estrita com os agentes locais.
Uma câmara municipal responde certamente melhor e mais depressa do que o Ministério da Educação que está distante.
Quando um ministro está a decidir numa pequena questão local, quando é forçado a isso - admito que, normalmente, fá-lo só em situações extremas e terá um intervenção útil e decisiva nesse momento - mas está a utilizar o seu tempo de uma forma que não deve fazer, deve concentrar o seu tempo de facto naquilo que é a definição de estratégia para a sua área, de garantia de padrões de qualidade de políticas públicas e isso vale para todos os sectores. Para o ambiente, para a economia, para a acção social, para a saúde, para a educação…
Se estivermos a falar de um hospital central, obviamente que é nacional e há-de continuar a ser, há uma rede de cuidados diferenciados que não poderá jamais existir em todos os lados e aí tem de haver uma dimensão de equilíbrio que é nacional. Temos depois um nível intermédio: as unidades locais de saúde. Por exemplo, uma unidade local de saúde que agrega o hospital de Beja e todo o conjunto de centros de saúde do Baixo Alentejo e integra uma estrutura que se chama unidade local de saúde. Prevemos que o conjunto dos municípios do Baixo Alentejo, neste exemplo, indiquem um administrador que participa ao lado dos outros na direcção dessa unidade local de saúde. Esse administrador pode trazer a mais esta visão do equilíbrio: onde é que é preciso dar resposta hoje? É em Odemira, em Mértola ou em Barrancos?
Se passarmos a um nível ainda mais pequenino, temos de generalizar aquilo que são belíssimas experiencias em que a junta de freguesia ou a camara municipal fornecem uma carrinha devidamente equipada e, às vezes, basta um enfermeiro que vai às aldeias contactar as pessoas.
O Governo tem insistido num grande consenso para esta descentralização. Tem falado com o PSD. Acha que, neste momento de crispação política, esse consenso vai ser conseguido?
Não gosto muito de usar essa expressão, acho que ela se desvalorizou muito nos últimos anos, mas esta é uma verdadeira reforma estrutural. Estamos a falar de uma transformação no modo de organização do Estado, das políticas públicas que tem efeitos a muitos anos. Isto é um virar de página histórico, que exige, antes de mais, um grande convergência com as autarquias locais. Se não o quisessem, não valia a pena esta vontade do Governo. Portanto, durante ano de 2016 trabalhámos muito intensamente - o PS, o PSD e o PCP, são os três grandes partidos autárquicos - fizemos um trabalho muito intenso, que foi difícil, mas em que com uma participação muito responsável do lado autárquico permitiu algo que para nós é uma garantia sem a qual não avançaríamos. Tivemos por unanimidade um parecer da Associação Nacional de Municípios exigindo que a descentralização avançasse. Tivemos também uma posição paralela da Associação Nacional de freguesias e isso foi ao conselho de concertação territorial que é presidido pelo primeiro-ministro.
A nossa proposta irá para a Assembleia da República. Esta abertura que tivemos da ANMP é a mesma que esperamos possa existir no Parlamento. Ainda na sexta-feira passada, viabilizamos uma proposta do PSD sobre gestão pelos municípios de património devoluto. O que deve haver aqui é abertura para a maior convergência possível e, nesta matéria, há uma tradição no Parlamento de construção de caminhos de convergência.
E foi para garantir esse consenso que o Governo deixa para depois algumas propostas que fazem parte do programa eleitoral do PS, como a eleição directa para as comissões de coordenação regional e para as áreas metropolitanas?
Estamos a falar de duas coisas completamente diferentes. As comissões de coordenação regional são hoje direcções gerais. O que está previsto, no programa de governo, é que após as eleições autárquicas de Outubro, os novos dirigentes das comissões de coordenação regional sejam eleitos por um colégio eleitoral muito alargado, estamos a falar de mais de quatro mil pessoas na região Norte ou na região Centro, estamos a falar também aqui de um caminho que significa uma mudança cultural, até na forma de governação de políticas públicas a nível regional que significa corresponsabilizar aqui o corpo autárquico na escolha destes dirigentes. O Governo assume que não quer designar os próximos dirigentes das CCDR ao contrário do fizeram todos os governos anteriores. Estamos a falar de um quadro de alteração de estruturas que são de Estado. Essa reforma vai avançar. Tem dois momentos: um momento que é esse, que acontecerá no início do próximo ano, não tem a urgência desta lei-quadro, e terá depois um momento segundo que é identificar nas estruturas de organismos regionais dos vários ministérios quais as funções que devem continuar a ser exercidas pelo Governo e aquelas que devem transitar para este nível regional.
Quando às áreas metropolitanas, temos uma situação paradoxal. As áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, que são as únicas grandes áreas urbanas em urbana, existem enquanto associação de municípios desde a década de 80. Há uma total unanimidade de que o modelo que existe é inadequado que serve para muito pouco, mas que há questões, quer no Grande Porto, quer na Grande Lisboa, que só têm uma resposta eficaz a uma escala superior às dos municípios. Questões como transportes, as águas, onde investir e não investir, a questão da energia. Há um total acordo que o modelo actual é péssimo. Por uma razão ou por outra há sempre uma dificuldade em dar um passo adiante que está, aliás, previsto na Constituição, que é a constituição de verdadeiras autarquias metropolitana.
A nossa posição é muito clara: queremos a maior convergência possível, portanto, temos vindo a trabalhar com as áreas metropolitanas. Se a necessidade de convergência exigir até soluções diferenciadas de competências na grande Lisboa e no Grande Porto, estamos disponíveis.
Admite haver soluções diferentes para Lisboa e Porto?
Admito porque há problemas diferentes. Águas, por exemplo, em Lisboa estamos a falar de fornecimento através da Epal, uma empresa pública; no Porto, há basicamente sistemas município a município. Se o ponto de partida é diferente, temos de ter soluções administrativas diferentes.
Admite, aliás, o Governo que, se for mais fácil, este entendimento a partir do trabalho que tem vindo a ser feito com os presidentes dos conselhos metropolitanos, se o entendimento for que as propostas devem ser da iniciativa dos partidos e não do Governo, isso para nós não constitui qualquer problema. Se a questão é de tempo e que é politicamente sensível, se se considerar que não há tempo já para que o processo eleitoral desta natureza ocorra com as próximas eleições autárquicas, nós achamos que vale a pena concertar tudo o que é necessário concertar nem que o entendimento seja fazer as eleições só em 2021.
Há aqui um grande acordo: como está não corresponde àquilo que são problemas de todos aqueles que vivem no Grande Porto ou na Grande Lisboa e percebem que a fronteira não pode ser o Rio Douro ou que não é a estrada da circunvalação que faz acabar o problema. O mesmo em relação em relação a Lisboa, quer na Lisboa Norte, quer na Península de Setúbal.
Mesmo quando falamos desta lei-quadro que vai para o Parlamento, também estamos a falar de um calendário em que até o Governo e até o Presidente da República já disseram que devia ser aprovado até ás próximas eleições autárquicas, mas depois há um processo que se vai prolongando no tempo
Não há aqui nenhuma razão de ser que tenha a ver com o facto de haver eleições, há é uma preparação atempada. Não queremos que uma reforma que é tão profunda deixá-la para o fim do mandato do Governo. Isto está no programa de Governo e o que sempre dissemos é que queríamos fazer em 2016 todo o trabalho preparatório. A seguir, aprovar as leis, decretos-lei, o que for necessário para pôr isto em execução. Para que quem vá ás eleições, em Outubro, saiba no fundo qual é o novo quadro de regras com que vai tratar, com que linhas é que se cose. E que o próximo mandato, 2017-2021, seja um mandato de consolidação destas competências.
O que também acertamos com os municípios é que estamos a falar de uma transformação profunda e não seria prudente dizer "ah agora em 2018, de imediato, passa já tudo". O que vamos acertar aqui é um modelo de faseamento ao longo do próximo mandato autárquico.
E desse faseamento também fará parte uma nova lei de finanças local?
Estamos já a trabalhar na revisão da lei de finanças locais, o que sucederá é que a concretização da transferência de recurso acompanhará a transferência de competências. A regra geral virá na lei de finanças locais, a concretização será feita à medida da transferência, em cada Orçamento do Estado será feita a transferência á medida das competências.
Neste processo o Governo já foi acusado de querer fazer uma regionalização encapotada. Isto é uma regionalização aos poucos ou a regionalização é um processo encerrado?
Em tudo isto aqui estamos a falar de competências municipais, de descentralização para os municípios e para as freguesias. A regionalização está prevista na Constituição, estamos a falar de um outro patamar, de um nível regional entre o Estado central e as autarquias.
Mas a regionalização continua a ser uma ambição do PS?
O programa do governo é muito claro: não está previsto nesta legislatura retomar o tema regionalização. De um ponto de vista pessoal, entendo que essa é uma questão que terá de ser retomada na devida altura e que constitui um entrave a uma boa gestão das politicas publicas. Muitos daqueles que tiveram uma posição contrária, há 20 anos, já o reconheceram.
Houve erros de parte a parte, temos de criar um consenso em torno de um modelo territorial. Agora, temos de definir prioridades. A pior forma de não fazer nada é querer fazer tudo ao mesmo tempo. A prioridade é descentralizar. A média de despesa pública realizada a nível local na Europa é de 25%, em Portugal é 14%. O que está no programa nacional de reformas é, até ao final da legislatura, atingirmos 19%. Significa um ganho imenso. Passar de 14 para 19 significa que aumentamos cerca de um terço o que são os actuais recursos geridos a nível local.