Pouco passa da uma da manhã. A missa que encerrou o primeiro dia das celebrações do centenário das aparições acabou, e os milhares de peregrinos que encheram o Santuário de Fátima começam a dispersar. O movimento para fora do recinto é contínuo, mas há muitos que procuram já ali o melhor lugar para passar a noite.
Angeles, Carmen e Lucero instalaram-se por baixo da entrada da Basílica da Santíssima Trindade. Chegaram de Vigo, na Galiza, no sábado e regressam no domingo. Angeles e Carmen são espanholas, Lucero é mexicana. Falam a mesma língua, mas têm dificuldade em compreender algumas expressões umas das outras. O que não as impede de conversar animadamente.
Dezenas de pessoas instalaram-se ali, aproveitando o tecto, e receando a chuva que tem pontuado os últimos dias em Fátima. Umas tentam descansar. Estendem-se debaixo de mantas, dentro de sacos-cama ou escondidas sob guarda-chuvas que pousados no chão formam tendas improvisadas. Outras, como Angeles e as amigas, decidiram que esta noite dormir está fora de questão.
“Pode dormir amanhã”, explica Angeles a uma vizinha que lhe pediu silêncio. Carmen e Lucero acenam aprovadoramente. À volta, ouvem-se vozes de mais grupos que ali se formaram sem intenções de dormir. E de vez em quando lá vem um “shhh” de alguém que tenta contrariar a tendência.
Faz-se mais silêncio por baixo do terço luminoso concebido por Joana Vasconcelos. Uma fila de sacos-cama aproveita o corredor murado, mas sem tecto, que segue em direcção à grande esplanada do recinto.
Os que foram saindo, deixaram as velas da procissão acesas pelo caminho em cima dos muros que rodeiam o recinto. Não as quiseram apagar. Se a noite permitir, arderão até de madrugada.
Noite fria
Fora do santuário, a “Casa das Regueifas” ainda recebe clientes às 2h00. Isaura Ribeiro, a proprietária, abriu a porta às 9h00 e ainda não a conseguiu fechar. Dois clientes animados entram à procura de uns bolinhos de côco. Vieram de carro, onde vão passar a noite, e ficaram com fome. Umas senhoras procuram o melhor doce entre regueifas, pães-de-ló e bolachas de amêndoa.
Francisco Fermoselle entra com a mulher e as duas filhas à procura de um café com leite. A família decidiu vir para Fátima ao fim do dia e agora preparam-se para regressar a Lisboa. Apesar de não terem tido qualquer dificuldade na viagem, não conseguiram entrar no recinto porque estava muito cheio.
Mas não dão a viagem como perdida, uma vez que ainda puderam acompanhar a missa e visitar a Basílica da Santíssima Trindade. Na “Casa das Regueifas” não servem café e a família prossegue a busca com um saco de doces na mão. Os clientes continuam a entrar, mas Isaura tem de fechar a porta para voltar a abrir daqui a poucas horas. Esta noite em Fátima não tem precedentes, garante. Mesmo sendo véspera de 13 de Maio.
Nas ruas, há sempre um ou outro grupo de peregrinos a esticar as pernas. E algumas lojas aproveitam o movimento extra, que é disperso mas contínuo.
Josefina Almeida tentou ir ao Pingo Doce. Tinha sido avisada de que o supermercado estaria aberto até às 3h00 naquela noite, e agora, ainda sem jantar, tentou ir abastecer-se. Veio a Fátima com uma amiga de Londres que adiou o regresso para ver o Papa. Esteve a poucos metros de Francisco e chorou quando o ouviu falar. “Ele mexe comigo, as palavras dele são penetrantes, comovem-me”, explica.
Nesta peregrinação, só lamentam o frio. No fim da missa, abrigaram-se no interior da Basílica da Santíssima Trindade, mas o espaço foi fechado por volta da uma da manhã.
As duas amigas chegaram à porta do supermercado e, vendo a porta fechada, voltaram para trás, mas a Renascença confirmou pouco depois que ainda estava aberto, embora com poucos clientes. Nove a vinte minutos da hora de fecho. “Têm de chegar-se ao pé da porta para ela abrir”, justifica o segurança.
À medida que a noite vai avançando, são menos as lojas que resistem abertas. Na principal rua de Fátima, por onde passou esta tarde o papa e por onde irá sair amanhã, os cafés e restaurantes que às duas ainda serviam clientes, às três já fecharam as portas.Já o terminal rodoviário transformou-se num dormitório abrigado do frio. Dois guardas da GNR que fazem a patrulha de bicicleta explicam que o terminal era para ter fechado, mas a senhora que o iria fazer não quis mandar ninguém embora. Na sala de espera, há rostos cansados enfiados em sacos-cama, embrulhados em mantas. O barulho é o mínimo possível, apenas o indispensável para discutir a melhor posição para descansar.
No caminho de regresso para o santuário, os mesmos grupos dispersos e os lojistas resistentes são quase todos casas de recordações e artigos religiosos. Um termómetro de rua regista a temperatura de 10ºC. Junto à Basílica da Santíssima Trindade, as velas apagaram-se.
Movimento contrário
Mas a verdadeira enchente está junto à Capelinha das Aparições. Centenas de pessoas permanecem ali em vigília. Há celebrações a decorrer a noite inteira, que começaram com a Via Sacra às 2h00 e terminam com uma procissão eucarística às 7h00.
Joana Pinheiro acabou de chegar de Barcelos e traz ao peito um pin que diz:”jovens audazes”. Faz parte de um grupo de jovens de Areias de Vilar e veio a esta hora porque “foi o único transporte que conseguiram”. No grupo vieram 11 jovens com idades que vão desde os 16 aos 33 anos. Chegaram ao recinto por volta das 3 da manhã e vão partir às 15h00. Tudo para ver o Papa.
Francisco “é um senhor que nos chama a atenção porque veio com ideias diferentes, veio renovar a religião”, argumenta Joana. Não tem dúvidas de que será um dia “emocionante, cheio e de alegria”. E o cansaço? “Estou crente de que não vai pesar”.
Às 4 da manhã, o santuário começa a voltar a encher-se. O movimento de pessoas é novamente para dentro. Adelina Sousa, de 58 anos, também chegou agora, vinda de Paredes. Trouxe “casacos, kispos e mantas” e só sairá dali quando vir o Papa.
Por trás da capelinha, no tocheiro, dezenas de pessoas cumprem as suas promessas, fazem pedidos, acendem velas de todos os tamanhos. Algumas deitam uma mão cheia delas de uma vez. E as chamas lá dentro dançam mais altas do que elas.