“Em caso de dúvida é melhor maiores restrições à vida das pessoas, mesmo que cause dor, mas que possa aliviar a situação a médio prazo”. É assim que João Marques da Cruz, administrador da Companhia Elétrica de Macau e da EDP, que vive entre Macau, Hong Kong e Lisboa define as melhores práticas para atuar numa situação de pandemia. O mesmo não tem dúvidas de que as medidas draconianas, entre as quais a quarentena de mais de duas semanas, ajudaram o antigo território sob administração portuguesa a estancar o número de infetados nos 10 casos. Há mais de um mês que não se registam novas infeções.
Será excessivo fazer extrapolações ou comparações com o que agora se passa em Portugal, porque estamos a falar de um território com pouco mais de 670 mil habitantes, e com uma economia fortemente dependente dos casinos. Ou seja, apesar do alto impacto económico do fecho dos espaços de jogo, a implementação dessa difícil decisão condiciona o resto da sociedade, tornando a efetividade da globalidade das medidas maior.
Para perceber os fatores chave do sucesso da estratégia de Macau, pelo menos até ao momento, a Renascença ouviu quatro portugueses a viver naquele território chinês: a presidente da Casa de Portugal e advogada, Amélia António, o presidente da Associação de Médicos de Língua portuguesa em Macau, José Manuel Esteves, o administrador da Companhia Elétrica de Macau, João Marques da Cruz, e o jornalista da TDM Rádio Macau, André Jegundo.
Medidas da China
Há seis anos a trabalhar na Região Especial Administrativa de Macau (RAEM), o jornalista André Jegundo põe como primeiro fator de sucesso, as medidas tomadas a montante pela China.
“Se as medidas sem precedentes tomadas por Pequim não tivessem acontecido, Macau não estaria na situação em que está. Falamos de medidas, que segundo a Organização Mundial de Saúde, nenhum país na história adotou na resposta a um surto deste género”, explicita.
Entre as mais marcantes, a quarentena que se estendeu a dezenas de milhões de pessoas por tempo indeterminado em várias cidades do país, a proibição de circulação, ou a construção de hospitais em poucos dias com mais camas para infetados.
Coesão do Governo
O presidente da Associação de Médicos de Língua Portuguesa em Macau, José Manuel Esteves, salienta a coesão de todo o Governo na abordagem a esta crise. “Não foi só na área da saúde, houve uma intervenção coordenada de todas as estruturas, desde a segurança interna,à economia, às finanças, e ao turismo”, enumera o médico.
O mesmo José Manuel Esteves elogia as conferências de imprensa diárias com representantes de todas as áreas do Executivo, que iam explicando às pessoas as medidas aplicadas, o que contribuiu para que houvesse uma grande tranquilidade no seio da população.
A presidente da Casa de Portugal, Amélia António, concorda que esta transparência dos políticos foi decisiva para o comportamento da população. Assim, quando o chefe do Executivo da RAEM, Ho Iat Seng, garantiu que não faltaria comida nos supermercados, porque o abastecimento estava garantido, as pessoas não tentaram açambarcar os alimentos essenciais.
“Nunca faltou nada. As pessoas sempre acreditaram naquilo que lhes era dito”, explica.
Quarentena forçada por mais de duas semanas
Já o administrador da Companhia Elétrica de Macau (CEM) não tem dúvidas de que o sucesso da RAEM está relacionado com o facto de tudo ter fechado em simultâneo. O encerramento dos casinos foi a decisão que teve mais impacto, porque a maior parte das atividades económicas estão relacionadas com o jogo. Os serviços públicos ficaram reduzidos ao mínimo, e as escolas fecharam.
Os casinos, recorde-se estão contratualmente obrigados a estar abertos 24 horas por dia, 365 dias por ano, e pela primeira vez desde que há memória não abriram as portas durante tanto tempo.
“Em Macau, tudo está interligado com os casinos e como consequência todo o comércio fechou. As pessoas não tinham para onde ir, e a isso somaram-se políticas muito ativas de teletrabalho nas grandes empresas de Macau, nomeadamente a CEM”, recorda João Marques da Cruz.
Estas medidas, sobretudo as relacionadas com o jogo, levaram a que o Governo de Macau, segundo o jornalista André Jegundo, preveja para este ano um défice na ordem dos 40 mil milhões de patacas (4,5 mil milhões de euros). Segundo o mesmo repórter da rádio portuguesa de Macau, a TDM, os economistas prevêem que a retração no turismo, e consequentemente no jogo, se mantenha por mais cinco meses.
A advogada Amélia António recorda à Renascença o impacto que estas medidas tiveram na cidade. “Não se via vivalma na rua. As ruínas de São Paulo, a maior atração turística da cidade estava vazia. Em 30 anos, nunca vi nada assim”, relembra.
Em Macau, no ano passado entraram quase 39,5 milhões de habitantes.
Controlo muito rigoroso nas fronteiras
Outra das chaves do bom comportamento de Macau, na resposta ao surto do novo coronavírus, foi conseguida logo a partir do momento em que se percebeu que o grande foco da doença era a cidade de Wuhan, na província de Hubei, no centro da China.
“Praticamente pararam as entradas de pessoas dessas zonas, porque lhes era exigida uma declaração de saúde, de que não estariam contaminadas. E praticamente ninguém conseguia ter esses relatórios. Estas restrições foram alargadas a todas as regiões em que se sucederam os casos”, explica André Jegundo.
A isso somaram-se controlos de saúde para todos os visitantes, através de rastreios e medições de temperatura. Eram feitos a todas as pessoas que vinham de zonas com casos ativos, como a Coreia do Sul e o Japão. Todos os que chegavam a Macau estavam sujeitos a essa investigação clínica. “Isso implicava esperas de pelo menos oito horas para as pessoas que queriam entrar em Macau. Na prática muitas pessoas desistiram de o fazer”, sinaliza o jornalista.
Resposta dos serviços de saúde
Genericamente, os Serviços de Saúde de Macau passaram com distinção no teste ao Covid-19.
O presidente da Associação de Médicos de Língua Portuguesa em Macau, José Manuel Esteves explica que quando o surto apareceu no território o hospital público concentrou os casos positivos, houve uma outra estrutura alugada pelo Governo que assumiu as quarentenas, e os privados concentraram o tratamento de outras patologias.
O sistema passou a fazer um acompanhamento telefónico dos doentes. A cada um foi atribuído um código que permitia que sem contato entre profissionais de saúde e doentes, as receitas fossem aviadas.
André Jegundo concorda com o papel “muito importante dos Serviços de Saúde na prevenção de um surto local".
“Teve uma atuação rápida em identificar os casos confirmados e todas a redes locais de contato, pondo essas pessoas também em isolamento e observação médica para que não pudessem ser foco de transmissão da doença. Isso conseguiu prevenir um foco local”, explica.
Cultura de respeito pelas autoridades
Em Macau uma recomendação, ou ordem do Governo é levada muito a sério. O historial de epidemias na região, com a SARS à cabeça em 2003, tem ainda um impacto muito grande no subconsciente das pessoas.
“Essas memórias deixaram um lastro muito forte. Ninguém sai a rua quando é mandado ficar em casa. Só saem ao supermercado para fazer compras”, explicita.
A máscara como arma
Apesar da diretora de Saúde Pública da Organização Mundial de Saúde (OMS), Maria Neira, assegurar que é “irracional e desproporcionado” que se esgotem as máscaras e os desinfetantes nas farmácias por medo do coronavírus, o médico José Manuel Esteves diz que o seu uso generalizado contribui para que as doenças respiratórias não se propaguem. Em Macau, essa é regra.
“Numa doença destas, numa fase inicial não sei se estou infetado ou não. Não sei se tive algum contato, e se usar a máscara a possibilidade de transmitir a outras pessoas é menor. O problema é uso incorreto. Aqui houve um esforço para explicar como fazê-lo”, conta.
Na China, a pressão social para usar a máscara é enorme. “Se não usarmos, todos olham para nós”, alerta André Jegundo.
O repórter da rádio em língua portuguesa de Macau acrescenta que nos transportes públicos ainda “não se entra sem a máscara”.
Sem mais infetados, mas com medidas restritivas
A vida em Macau regressa lentamente ao normal, conta a presidente da Casa de Portugal, Amélia Antónia. Ainda assim há algumas restrições.
“O Governo continua a pedir a quem puder não andar na rua, para não o fazer. Quem puder trabalhar a partir de casa, também o deve fazer. As pessoas não se devem expor demasiadamente”, identifica.
Os casinos voltaram lentamente a abrir, mas com constrangimentos, e os serviços públicos também.
As escolas é que continuam sem aulas, pelo menos até 20 de abril. Alguns alunos vivem no interior da China, nas cidades próximas de Macau, e até a situação estabilizar nessas regiões, esta medida de prevenção mantém-se.
Em várias empresas, os trabalhadores têm de controlar a temperatura corporal à entrada e à saída, e é obrigatória a apresentação de uma declaração de saúde. Cada pessoa pode preenchê-la através do telemóvel ou em papel.
“Há uma responsabilização das pessoas. Ao fazerem essa declaração, estão a comprometer-se sobre a sua situação de saúde e podem ser responsabilizadas criminalmente, se, por exemplo, omitirem que estiveram numa zona de alto risco”, explica o jornalista André Jegundo.
“A falsificação das informações do estado saúde é crime. As consequências são graves”, remata a advogada Amélia António.