“Quis recuperar um velho amigo”, confessa Luis Sepúlveda. O autor chileno fala assim de Juan Belmonte, a personagem que foi resgatar ao seu passado literário, ao livro “Nome de Toureiro”, e que agora é protagonista em “O Fim da História”, o seu regresso ao romance. É um mergulho no mundo do comunismo soviético, mas também no da ditadura de Pinochet.
Belmonte confunde-se com o seu próprio criador, confessa Sepúlveda, em entrevista num hotel de Lisboa (uma conversa que pode ouvir no Ensaio Geral desta sexta-feira, a partir das 23h30, na Renascença). “Temos muitas semelhanças. Nascemos no mesmo ano, temos um passado idêntico, passámos coisas iguais. Quando Belmonte participou no primeiro romance, tal como eu, tínhamos acabado de fazer 42, 43 anos. Hoje, temos os dois 67 anos.”
A experiência da idade serviu ao escritor e à personagem. “Quando comecei a desenvolver as primeiras ideias de ‘O Fim da História’ percebi que a única personagem possível era o Belmonte. Tinha de o recuperar”, justifica.
Para a sua nova história, na qual denuncia a tortura e eleva histórias de resistência, o autor de “Patagónia Express” precisava de um homem de coragem. Ainda assim admite, o seu Belmonte “está mais amargo, não está desiludido, mas está muito chateado com tudo, sobretudo com gente que renegou o que foi e tornou-se miserável ao serviço do pior da sociedade, da exploração, da falta de humanidade.”
Cossacos no Chile
Pegando nesta personagem, por quem tem “muito afecto”, Luis Sepúlveda deixou-se contaminar por uma história real para se lançar na escrita de “O Fim da História”. “Era uma história necessária e que queria contar”, explica, depois de fumar o seu cigarro.
O autor, que vive hoje na cidade espanhola de Gijon, recorda: “Em 2005, durante o primeiro governo da Presidente Michelle Bachelet, chegou ao Chile, ao Palácio do Governo, uma delegação de cossacos, com as suas vestimentas típicas com gorros de pele. E os chilenos que viram isto ficaram espantados. Primeiro, acharam que era uma delegação do Teatro Bolshoi que esteva em digressão no Chile, mas eram cossacos de verdade.”
“Queriam negociar a libertação de um criminoso de guerra preso no Chile. Foi um dos principais responsáveis das violações dos direitos humanos, assassinatos, mortes, desaparecimento de pessoas, tortura, roubos e que está condenado a mais de mil anos de prisão. Queriam comprar a sua liberdade porque, por causa das coisas da História, este homem é o último grande chefe cossaco, o último ‘Ataman’”, conta.
Este episódio despertou a questão: “E se?”. “Por sorte, Bachelet disse-lhes que não” e explicou-lhes que no Chile “há poder judicial. Este homem foi julgado com todas as garantias processuais de um Estado de Direito e foi condenado. Não há possibilidade de sair em liberdade”.
Um pedaço de Lisboa no novo livro
Escrever é um exercício de preservação da memória para Luis Sepúlveda. “A literatura tem de ter um grande espaço para a memória. Às vezes, quando escrevo obras de outros géneros, uma fábula ou o que mais gosto de escrever, que são os contos, claro que aí a imaginação voa para qualquer lugar. Mas, quando me dedico ao romance, sinto que é importante o esforço de conservar a memória.”
Gosta de se demorar nos detalhes. “A literatura preocupa-se em contar as histórias dos pequenos, normalmente dos perdedores e derrotados, que são os mais interessantes. Eu deixo que a minha literatura tenha espaço para isso!”
Sepúlveda, que vê na escrita “a incrível máquina da imaginação”, conta-nos que entre as várias geografias de “O Fim da História” está também Lisboa.
“Um dia, um amigo, um grande escritor chileno, que já morreu, infelizmente, há uns anos, chamado José Miguel Varas, contou-me a história de um cozinheiro de Estaline que era chileno. Eu comecei a seguir a história desse homem e encontrei uma história de amor que começa em Lisboa. Graças à ajuda de alguns amigos, cheguei aos arquivos da família dos que foram proprietários do Hotel Vitória, que fica na Avenida da Liberdade. Este tipo foi lá cozinheiro e, mais tarde, foi cozinheiro do Estaline. A história começou a nascer baseada nas memórias que tu como escritor vais recriando, reconstruindo e dando corpo ao que é uma narração.”
“Complicar a vida”
A narrativa de um livro de Sepúlveda baseia-se em muita investigação. Descreve-se como um escritor “ extremamente disciplinado” e com rotinas de trabalho: no Verão, gosta de se levantar cedo, “às 8h30 da manhã”, e trabalha “até às duas da tarde”; o resto do dia é para desfrutar, “ler e ouvir música”.
Em tom irónico, Sepúlveda diz que trabalha, “realmente, com muita disciplina porque cada um procura a melhor forma de complicar a sua vida”.
“Eu complico a vida de uma maneira muito especial. Gosto de me documentar muito sobre o que vou escrever. Para este livro cheguei a ter 600/700 páginas de documentação que têm de ser transformadas no máximo em duas páginas de literatura. Porque senão as coisas mudam e passa a ser um livro com citações em nota de rodapé ou num ensaio”, explica.
O resultado está em “O Fim da História”, que chega às livrarias portuguesas com a chancela Porto Editora e “depois de 20 correcções, até chegar à correcção final”.