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Trabalhar como piloto de aviação nunca foi uma profissão simples, requer anos de treino e dedicação, conhecimento de áreas tão variadas como meteorologia, física, aerodinâmica, matemática, mecânica, engenharia, legislação, gestão de recursos, algum jeitinho e muito mais.
E não, a maior dificuldade não é, como já me perguntaram inúmeras vezes, a quantidade de botões no cockpit e saber o que eles fazem, isso aprende-se relativamente rápido. A parte complicada costuma ser as incertezas e lidar com os imprevistos, sejam falhas mecânicas, mudanças climatéricas, um passageiro que teve um ataque cardíaco, entre muitos outros que não vale a pena enumerar, não vá eu assustar passageiros futuros.
Mas para tudo isto costuma sempre haver procedimentos a seguir e ao fim do período de trabalho, seja ele um dia ou umas semanas a voar por esse mundo fora, com ou sem imprevistos, a tripulação tem sempre uma certeza que ajuda a manter a motivação, a certeza de que eventualmente voltam para casa e para junto da família. Ou assim costumava ser, até à chegada da época da Covid...
Penso que já todos estamos a par do impacto que o vírus teve na aviação: milhares de tripulantes despedidos, rotas canceladas, aviões no chão, aeroportos vazios, companhias aéreas a declarar falência e etc. Mas não é disso que vos quero falar, quero falar do problema que tem sido para os que ainda estão a voar e das dificuldades acrescidas e incertezas que tornam uma profissão difícil bastante mais complicada do que já era.
As quarentenas têm sido difíceis para todos, sem dúvida, mas é sempre mais fácil ficar de quarentena na nossa casa do que preso no estrangeiro sem saber como ou quando se voltará a casa. Este é um dos problemas que tem dificultado a vida dos pilotos e tripulantes que estão a tentar voar como sempre voaram e que a qualquer momento podem descobrir que o país onde acabaram de aterrar teve um pico de Covid e decidiu fechar as fronteiras.
Foi o que aconteceu a uma tripulação de colegas no Kuwait. Aterraram um dia e estava tudo normal, iam ficar três dias no Kuwait e depois regressar a casa. Durante esses dias os primeiros casos de Covid apareceram, a situação no país mudou e o Kuwait fechou as fronteiras, fechou o aeroporto internacional e ninguém pôde voltar a entrar nem a sair do país nos próximos dois meses. As medidas tomadas foram duras e os tripulantes ficaram confinados ao hotel, o Kuwait impôs um recolher obrigatório e multas de 30 mil Euros ou três anos de prisão para quem quebrasse as regras. Não estou de modo algum a criticar as medias impostas, nem pelo Kuwait nem por país nenhum – cada governo fará o que achar necessário para melhor lidar com a situação – estou apenas a relatar a realidade de uma tripulação presa no estrangeiro, num quarto de hotel durante dois meses sem saber quando voltariam a casa e às suas famílias.
Nada que a companhia aérea pudesse fazer, nada que os amigos, família ou país de origem pudesse fazer... Nada a fazer senão esperar e ver o que aconteceria. Um sentimento que começa a tornar-se familiar a todos nós.
Felizmente, ao fim de dois meses em quarentena no estrangeiro regressaram a casa, mas a situação está longe de estar resolvida porque o que aconteceu a esta tripulação, pode acontecer a qualquer tripulante a qualquer momento em qualquer país. Esta incerteza é algo com que pilotos e tripulantes têm de lidar ao voar num mundo pós-Covid. Visto que cada país tem regras diferentes para lidar com o vírus, visto a situação do vírus estar em mudança constante e visto que as tripulações viajam por dezenas de países numa semana, podem imaginar o problema e preocupação que estes profissionais começam a ter, acima dos antigos e já habituais.
Como exemplo, posso dizer que nas últimas duas semanas estive em Portugal, França, Grécia, Chipre, Kuwait e Emirados Árabes Unidos, todos eles com regras e procedimentos de entrada e saída diferentes e sujeitos a mudarem a qualquer momento. Fui testado à Covid-19 três vezes – sempre negativo...Hurray! –, uma vez ao entrar na Grécia, vindo de França com 24h de quarentena até ter os resultados, outra vez ao entrar no Chipre, que também envolveu formulários on-line mas não teve quarentena, apenas foi necessário deixar o contacto e morada do hotel, e por último no Kuwait onde apesar de teste negativo só se pode ficar num hotel especifico no aeroporto e não se pode ficar mais de 24h no país nem sair à rua.
O futuro da aviação, dos pilotos e tripulantes, assim como dos passageiros parece por agora estar cheio de incertezas. A única certeza que tenho é que vamos continuar a dar o nosso melhor, a voar enquanto for possível e a navegar este novo céu cheio de mudanças constantes na esperança de chegar ao destino e conseguir voltar a casa.
*David Marle tem 39 anos e é piloto de uma companhia privada. Grande parte da sua atividade é passada a fazer evacuações médicas em países do médio e próximo Oriente.