Luaty Beirão: “Espero que algum Mandela venha a nascer em Angola”
01-06-2017 - 00:00
 • Raquel Abecasis (Renascença) e Nuno Ribeiro (Público)

Em entrevista à Renascença e ao "Público, Luaty Beirão diz que não vai votar a 23 de Agosto, porque o processo eleitoral está manchado de irregularidades. O activista aposta na vigilância dos cidadãos nas mesas contra o apetite voraz da fraude em Angola.

A classe política não tem a capacidade de reconciliação e é preciso que nasça um Mandela em Angola para sarar as feridas da sociedade, diz o activista Luaty Beirão, que em entrevista ao programa Hora da Verdade da Renascença e do jornal “Público”.

A greve de fome de 36 dias do rapper deu a conhecer ao mundo a situação em Angola e embaraçou o Governo de Luanda. Se a prisão de Luaty Beirão foi um “tiro no pé” do regime, como classificou a condenação, agora admite que o regresso ao país de José Eduardo dos Santos, após quase um mês de ausência em Espanha para tratamento médico, o tranquiliza. Não tem expectativas de uma evolução do regime e reconhece que a indignação é fenómeno urbano e contido.

O regresso de José Eduardo dos Santos faz diferença ou o regime vai para além do Presidente?

É um alívio que esteja de volta, durante um mês estivemos em suspenso, com rumores e o silêncio dos responsáveis do Estado. É importante que ele tenha regressado e se aguente nas canelas pelo menos até às eleições. Sabemos que os processos eleitorais não são transparentes, há indícios de fraude, a imprensa pública dá 90% de tempo ao MPLA e existe o uso de meios da CNE [Comissão Nacional de Eleições] para transportar elementos do MPLA. São indícios que nos fazem não estar seguros quanto à transparência do processo eleitoral. É quase certo que o MPLA volte a “ganhar”, mas é importante que ele [Eduardo dos Santos] esteja presente quando passar a chave do país.

O que teme se ele não estiver?

Que não se cumpra a Constituição. Se fossemos uma democracia solidificada estaria tranquilo. Se Eduardo dos Santos não regressasse ou o seu estado de saúde se agravasse e subisse o vice-presidente Manuel Vicente, pouca gente em Angola acredita que houvesse eleições. São cenários de incerteza que podiam acabar com um golpe de Estado.

Vai votar em 23 de Agosto?

Não, porque o processo está eivado de irregularidades, não há vontade de transparência de quem organiza. O partido no poder tem a mão em cima do processo eleitoral, controlou as listas através do Ministério da Administração do Território — cujo ministro é candidato a vice-presidente — e não deixa fazer uma auditoria aos cadernos eleitorais. Está a contratar empresas com centenas de queixas em processos anteriores sem as exigências do concurso público.

Qual é a opção?

Decidi não votar, mas não abster-me do processo, vou promover uma observação dos próprios eleitores. Quem decidir votar não deve limitar-se a meter o boletim de voto na urna, deve estar atento a qualquer indício.

Substituir-se à oposição?

Não, seremos complementares. O que a oposição faz não é suficiente, é sofrível, mas dizer que não serve para nada seria um exagero.

Tendo em conta esse cenário, para que servem as eleições?

Servem para legitimar ou continuar a fingir que estamos numa democracia. Nos bastidores estão a ser acomodados os interesses dos que estiveram na teia tecida por José Eduardo. São estas pessoas que estão mais inseguras sobre o que vem a seguir e para quem ele é o garante.

Um próximo Presidente pode liderar uma transição?

Gostaria de estar errado, mas prefiro ter a fasquia baixa e ser surpreendido. Não sei como vai funcionar uma presidência [a de João Lourenço] tendo à frente do partido outra pessoa [José Eduardo dos Santos], vai haver um conflito de poder e quem vai continuar a mandar por uns tempos vai ser o José Eduardo. Mas não acredito que João Lourenço deixe isto prolongar-se. Não sei se ele tem ideias próprias, nos discursos de pré-campanha não traz nada de novo, nada de inspirador, não é sequer eloquente.

João Lourenço não fala de combate à corrupção?

Fala, mas está a usar meios do Estado para a campanha. Portanto, é um indício de contra-senso.

Em Novembro, na apresentação do livro “Diário da Prisão”, disse que os angolanos foram treinados para não pensar e não agir. Continuam assim?

A não agir, pelo menos. Temos uma crescente onda de indignação, sobretudo, nas redes sociais. Pessoas, inclusive do partido, começam a dizer basta, que é de mais. Com o último escândalo [250 carros para os futuros deputados no valor de 72 milhões de dólares] e o filho do Presidente a dar 500 mil euros por um relógio, voltou a indignação às redes sociais, mas não transpira.

É essa a debilidade?

Sim. Não temos poder de mobilização, de fazer com que as pessoas rompam a barreira do medo.

O facto de o Luaty e os seus companheiros terem estado presos não vos dá a obrigação de votar e de concorrer?

No contexto que temos, as eleições são teatralizações para legitimar uma democracia que não existe e eu não quero participar numa peça de teatro.

Qual a solução? Um golpe de Estado?

Não, não. Nas eleições, o campo de luta é monitorar onde costuma haver falhas, incentivar observadores credenciados pela CNE ou delegados de lista de alguns partidos a estar nas mesas. Isso pode mitigar um bocadinho o apetite voraz da batota. O que resta à oposição é apresentar queixa formal aos tribunais que estão na mão do partido, na mão do Presidente. É o Presidente quem nomeia os juízes-presidentes dos tribunais, não são independentes. As queixas formais aos tribunais não resultam, é preciso que a opinião pública se indigne e exija que as coisas corram nos trâmites. O que queremos é que o jogo seja limpo, ganhe quem ganhar.

É indiferente quem ganhe?

Se as eleições são transparentes e o povo escolhe o MPLA o que vamos contestar? Posso contestar as políticas, mas não a vontade do povo.

Houve evolução quanto à liberdade de expressão e direitos humanos em Angola?

Depende do ponto de comparação. Há anos, o Rafael Marques tinha uma coluna num semanário. Hoje as pessoas independentes não têm espaço. Os jornais privados pertencem quase todos a membros do poder que precisam da crítica para argumentar que existe oposição e liberdade de expressão. Se pegar em qualquer jornal que não o “Folha 8”, o único que mantém a independência, vê que há autocensura dos jornalistas que raramente tocam no Presidente. Já houve mais liberdade de expressão. Na Rádio Ecclesia foram retirados espaços a pessoas da oposição, o Vicente Pinto de Andrade e o Reginaldo Silva. Havia programas que davam voz à população que ligava a dizer que faltava água aqui, luz ali, e tiraram.

Falou da rádio Ecclesia. A Igreja Católica tem protagonismo político e social?

Devia ter mais, infelizmente continua a estar muito aliada ao poder, apesar de no ano passado ter feito dois pronunciamentos muito severos e mais consentâneos com o que se espera da Igreja Católica. Houve um comunicado muito duro a criticar a governação e a corrupção e, há meses atrás, um outro. Mas ao longo dos anos tem estado muito aquém.

Porquê?

Não tenho resposta, há bispos muito próximos do poder e um argumento oculto com muita força, infelizmente: o tribalismo. A Rádio Ecclesia está a lutar para estender o sinal ao país. O sinal não se estende não só porque o Governo não quer, mas porque há dentro da Igreja Católica pessoas importantes que não forçam, que contribuem aos freios para a Igreja não avançar, e usam como argumento: “se isso chega a todo o lado vamos começar a ter as maiorias a assumirem os nossos lugares”. Essa coisa dos Kimbundos, dos Ovimbundos [tribos angolanas], é ainda argumento de peso em pessoas mais velhas, na estrutura mais conservadora e antiga da Igreja.

É um discurso da época colonial…

Que ainda é usado quando convém pelo novo poder. De vez em quando, vemos e ouvimos observações que revelam que isso está em carne viva, não se usa permanentemente mas quando necessário.

A queda do preço do petróleo espoletou a crise?

Sem dúvida, foi o grande calcanhar de Aquiles. O petróleo durante muito tempo serviu para os nossos galardões de país que mais cresceu no mundo. A queda do preço do barril acabou por revelar coisas que tinham conseguido ocultar, um buraco de biliões de dólares em vez do excedente que devíamos ter, porque no Orçamento do Estado o petróleo era calculado a 80 dólares o barril e era vendido a mais de 120. Portanto, havia um excedente que simplesmente desapareceu e não há responsáveis, culpados.

A crise económica é oportunidade para a mudança?

Concordo. Estamos a chegar ao fundo do poço, sente-se que as pessoas começam a reagir mas ainda não houve a gota de água para transbordar o copo, mas está a despertar consciências de que é preciso boa governação e transparência. A generalidade das pessoas, sobretudo a população urbana, está mais consciente.

Sindika Dokolo, marido de Isabel dos Santos, referiu-se a si como um exemplo de verticalidade angolana. É um elogio ou um sarcasmo?

Não consegui interpretar. Acho que ele tem uma agenda qualquer, forçou essa resposta numa entrevista ao “Le Monde” que estava a ser orientada para a arte contemporânea africana, mas conseguiu enfiar a questão do angolano, da resistência e citar-me como exemplo. Não sei qual a intenção. O elogio não me serviu de grande coisa porque continuo a ser mordido por cães-polícia se vou à rua protestar.

Que exemplos o inspiraram para a resistência?

Muitos e ninguém em particular. Inspiro-me mais nos meus companheiros que não têm metade do capital social que tenho, que correm riscos maiores do que eu. São eles que me dão força para continuar, que me fazem sentir a responsabilidade de não desistir e têm muito mais a perder.

E Mandela?

Sou fã. Era um homem completo, que teve defeitos e sabia assumi-los, que evoluiu na humanidade. É exemplo para todos.

É possível um Mandela em Angola que faça a reconciliação?

Acho que não há Mandela em Angola, no futuro nunca se sabe. Espero que algum Mandela venha a nascer em Angola e pacifique os corações e as almas. Há muitas feridas que não estão bem cicatrizadas e não há vontade de as sarar.

Que leitura faz das relações entre Portugal e Angola?

Portugal podia ter outra postura, mas nos últimos oito anos tem-se transformado desde que houve mudança de Governo e que o Banco Central Europeu passou sinais de alerta acerca das portas abertas ao nosso dinheiro, que não se sabe bem que origem tem, servindo Portugal de lavandaria e porta de entrada para a União Europeia. Mas, sobretudo, com este novo Governo há uma postura diferente. Só a título de exemplo, o problema com a visita da ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, levou à anulação da visita de António Costa e, apesar das pressões, ele recusou ir. O regime angolano precisa de ser legitimado dessa forma antes das eleições e António Costa recusou ir. Tanto António Costa como o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa só vão a Angola depois das eleições. O que é um indício de que as coisas já não são iguais.

Antes das eleições, as visitas seriam um apoio ao regime?

Sim, seriam. Mesmo na imprensa portuguesa, muita da qual estava a ser comprada por angolanos, há algum recuo.

A troca de capitais entre Portugal e Angola não era saudável?

Para Angola não era, para os angolanos não era.

Os angolanos tinham essa consciência?

Os angolanos ficam contentes quando há [na imprensa portuguesa] notícias que lá não saem sobre Angola, que acabam por ter que sair aqui. Houve problemas com a SIC, a ZAP de Angola [de Isabel dos Santos] retirou-a da grelha de canais. Portanto, há notícias que lá deveriam existir se tivéssemos uma imprensa independente e que não teriam razão de existir cá. Sentimos que essa tendência começa a ser de pinças sobre Angola e à relação entre Portugal e Angola. Ficamos contentes porque a imprensa portuguesa serve quase como uma imprensa nossa, ao serviço do interesse do angolano que é ostracizado e secundarizado.