Laura tomava banho, José Luis assisitia a uma partida de ténis quando sentiram um cheiro intenso a queimado. Dymitro e Oksana chegaram a Valência em fuga da guerra na Ucrânia, Sara e Amar foram em procura da qualidade de vida da cidade. Vicente não olhou para trás para pegar na carteira, e foi o que o salvou. José Antonio também não, mas ainda tentou bater à porta dos vizinhos, sem sucesso. Rai não saiu antes de tirar um vizinho de cadeira de rodas do prédio. São estes alguns dos relatos dos ex-residentes do prédio que sucumbiu em chamas, esta quarta-feira, em Valência.
Quase meio milhar de afetados pela tragédia do incêndio em dois edifícios, em Valência, ficaram alojados em hotéis, edifícios municipais criados pelas autoridades ou em casa de familiares. A maior parte ficou sem nada exceto meia dúzia de pertences pessoais e a própria vida. Esta sexta-feira de manhã, alguns deles foram saíndo do hotel SH Valencia Palace às gotas e relatando estas últimas horas.
Manuel e Laura, um casal que vivia no nono andar, contam que "é como um pesadelo, estávamos a olhar para as imagens no quarto de hotel e era como se não fosse a nossa casa". Ele é preparador físico e ela é professora. Laura deu conta do incêndio enquanto tomava banho, e começou a sentir um cheiro forte a plástico queimado. Quando saiu de casa, havia muito fumo e estava impossibilitada de usar o elevador. Entretanto, Manuel, que tinha sido avisado pela companheira, chegou ao prédio, encontrando-o já como uma "chaminé".
"Não tenho carteira de identidade, cartão bancário ou carteira, o carro estava na garagem, estava tudo dentro, não tenho nada. Eu não sei qual é a primeira coisa que eu tenho que fazer, eu acho que pegar algumas roupas; Vamos fazer uma lista de prioridades", relatam ao El Mundo, ainda em choque.
Dymitro e Oksana saíram cedo do hotel para levar o cão a passear. São um casal ucraniano que fugiu do país de origem para escapar da guerra. "Chegámos a Valência para escapar das bombas na Ucrânia e agora um incêndio deixou-nos sem nada", lamentam, quando entrevistados pelo El Mundo.
Segundo os residentes do prédio, o casal não era o único. Havia mais refugiados ucranianos no prédio, pelo menos 15, que estarão bem.
Um médico aposentado de 67 anos, José Luis Mas, conta que passava o final de tarde de quinta-feira a "assistir calmamente a uma partida de ténis de Dubai, de pijama" quando deu conta de "um forte cheiro de queimado". A sua mulher reparou numa "enorme fumaça preta", e o casal pegou na carteira e telemóvel e saiu rapidamente de casa. No caminho para a saída do prédio, José Luis ainda bateu à porta de alguns vizinhos, mas "ninguém abriu e não deu tempo de esperar mais porque o corredor estava cheio de fumo", conta ao mesmo jornal espanhol, com lágrimas nos olhos. Uma vez na rua, foi socorrido pela única ambulância disponível no momento, para receber oxigénio.
A portuguesa Sara e o seu companheiro belga, Amar, estiveram, como muitos outros, no Tabacalera, um edifício municipal criado pelas autoridades. Foram resgatados pelos bombeiros da varanda de casa, depois de duas horas de pânico e agonia no prédio. "Eles arriscaram as suas vidas para nos salvar", afirmam sobre os bombeiros socorristas, ao El Mundo. Saíram do hotel à procura de informações e respostas acerca do sucedido. Vêm cansados, sonolentos, e contam que chegaram a Valência há pouco mais de um ano, em busca da qualidade de vida que a cidade oferece. "Não esperávamos que algo assim nos acontecesse", lamentam. "Mas estamos vivos, que é o importante."
Alguns moradores passaram a noite em casa de familiares, como é o caso de Vicente. Saiu de casa para correr na quinta-feira à tarde, e quando voltou, deparou-se com o prédio onde morava em chamas. "Foi tudo muito rápido. Há famílias inteiras que ficaram com o que tinham vestido", disse à Europa Press. Como muitos, já não tem "carteira, nem roupa". "Numa questão de 15 ou 20 minutos todo o edifício foi engolido, todos pensamos que por causa da fachada, que tem um material que pega muito fogo e, juntamente com o vento, ardeu como uma falha em Valência".
José Antonio, um venezuelano que passou a noite em casa da filha, conta à ABC que sobreviveu porque "saiu com o que tinha", não tendo tido tempo sequer de "pegar no passaporte". Lamenta não saber quem são os vizinhos mortos, acrescentando que "tudo é muito triste".
Celebra o seu aniversário este domingo, 25 de fevereiro. "Não estamos virados para uma festa. Acho que podia ter morrido."
Como outros moradores, denuncia o facto de não ter havido um único alarme, "os alarmes de incêndio não dispararam". Sublinha, como outros sobreviventes, que deve a sua vida ao porteiro, que foi de porta em porta alertar as pessoas para que saíssem o mais cedo possível. "Julián, o zelador, salvou as nossas vidas".
Ainda há Rai, de 30 anos, que vivia com a mulher e o filho, com quem fugiu a tempo, mas não antes de conseguir "tirar um vizinho tetraplégico" do prédio. "As pessoas ainda estavam no prédio, e diziam para colocar bloqueios nas portas. Uma casa vazia foi incendiada e tudo começou a pegar fogo. As janelas estavam a explodir em cima de nós", recordou o homem em declarações ao jornal Levante.