Esta sexta-feira, poucos meses depois da escalada verbal entre Kim Jong-un e Donald Trump, o líder norte-coreano está sentado frente ao seu homólogo sul-coreano, em pleno território do “inimigo”, para uma cimeira que é vista por toda a gente como o prólogo do encontro do século.
Quando a generalidade dos portugueses dormia, o líder norte-coreano atravessou a fronteira com a Coreia do Sul, na “zona desmilitarizada” entre os dois países — e que, apesar do nome, é uma das mais vigiadas do mundo — para se encontrar com o presidente Moon Jae-in, um defensor da abertura ao diálogo com o vizinho comunista do norte.
Foi a primeira vez que um líder norte-coreano o fez. O ambiente entre os dois líderes foi cordial. Apertaram as mãos várias vezes e sorriram bastante. Kim puxou o seu homólogo para território norte-coreano por uns momentos antes de seguir para um palanque onde ambos escutaram uma canção popular em ambos os lados da península e receberam flores de duas crianças que moram na localidade fronteiriça.
Depois, Kim assinou o livro de honra da Casa da Paz, onde a cimeira decorre, e ambas as delegações seguiram para as conversações, marcadas por um razoável ceticismo, mas também esperança, de parte a parte.
Embora o interesse em relação a este encontro seja grande — desde 2007 que presidentes das duas Coreias não se encontram — aquilo que verdadeiramente suscita a expectativa global é a prevista cimeira entre Kim e Trump que deverá realizar-se em fins de maio ou início de junho. Mas, até por isso, todos os pormenores deste encontro inter-coreano serão cruciais para avaliar a disponibilidade do ditador norte-coreano para compromissos com o Ocidente.
Os sul-coreanos prepararam a cimeira com o máximo cuidado. O local onde decorrem os trabalhos está repleto de alusões à unidade da península coreana, que vão de símbolos comuns aos pratos do banquete com especialidades de ambos os países. E até a mesa onde se sentam as duas delegações tem 2018 milímetros de comprimento por 1953 milímetros de largura. Alusão à data de hoje e à da assinatura do armistício entre Norte e Sul, após três anos de guerra civil sangrenta.
Um armistício que não passou disso mesmo, já que nunca mais foi assinada a paz formal entre as duas partes, que se mantêm assim tecnicamente em guerra. Esta cimeira poderá dar sinais positivos neste aspeto. Dada a abertura manifestada nas últimas semanas por Kim Jong-un, talvez se possa esperar uma declaração conjunta que abra a porta à assinatura de um tratado de paz.
Seria, naturalmente, um ato simbólico que pouco alteraria de concreto na situação atual, mas que teria um inequívoco significado político. Selar a paz definitiva entre as duas Coreias 65 anos após o fim do conflito abriria a porta a um clima de desanuviamento e a uma era de cooperação em vez da atual tensão.
Mudança estratégica
Poucos gestos poderiam contribuir mais para a melhoria das relações entre as duas partes do que esse. Enterrar definitivamente a guerra e abrir uma nova era de paz e cooperação. Segundo observadores sul-coreanos, Kim estaria agora interessado em apostar no desenvolvimento económico do seu país, mais do que em prosseguir um braço-de-ferro com o Ocidente.
Essa mudança estratégica parece fazer sentido. Há sete anos no poder, o jovem Kim Jong-un conseguiu aquilo que nem o pai nem o avô conseguiram durante as suas dinastias. Fez mais testes com mísseis do que os seus antecessores — 89 contra 15 e 16, respetivamente —, ameaçou bombardear território americano se fosse provocado, atraiu a atenção e a apreensão internacional com o aperfeiçoamento do seu programa nuclear, entrou em disputa verbal com Trump. E, no fim de tudo isto, propôs uma cimeira com o presidente americano, que ele se apressou a aceitar.
O estatuto de potência nuclear estava consagrado. Que outro pequeno país reclamaria uma cimeira com o presidente americano e teria sucesso? Ao aceitar uma cimeira com Kim, Trump concedeu-lhe o estatuto de dirigente mundial que ele tanto almejava.
Desde janeiro, Kim passou a jogar o jogo do apaziguamento. Propôs que as delegações das duas Coreias formassem uma única equipa nas Olimpíadas de Inverno que decorreram no Sul. Recebeu em Pyongyang uma delegação sul-coreana através da qual mandou recados para Trump. Disse que estava aberto à desnuclearização da península. Garantiu que suspenderia os testes com mísseis intercontinentais e que encerraria o local donde têm sido lançados. Não exigiu como contrapartida a saída dos militares americanos da Coreia do Sul nem do Japão. Desativou os altifalantes que debitavam propaganda na fronteira para a Coreia do Sul. Montou uma linha telefónica que lhe permite falar diretamente com o homólogo de Seul. Deslocou-se a Pequim para informar pessoalmente o seu principal aliado da situação. Recebeu em Pyongyang o diretor da CIA — e desde ontem novo secretário de Estado americano, Mike Pompeo — numa visita que já não ocorria desde 2000 com Madeleine Albright, a chefe da diplomacia de Clinton. E está agora face a face com o seu homólogo sulista num ensaio para a cimeira com Trump.
Manobra diplomática
Como manobra diplomática dificilmente se poderia fazer melhor. O “homem-foguetão”, como Trump o apelidou em setembro nas Nações Unidas, que ameaçava o mundo com os seus testes de mísseis nucleares, revela-se subitamente um líder responsável interessado na paz regional e no desanuviamento com os Estados Unidos.
Mas será mesmo assim? Até que ponto há aqui sinceridade, é aquilo que toda a gente pergunta. A Coreia do Norte já se comprometeu mais do que uma vez a abandonar o seu programa nuclear e nunca o fez. E custa a crer que um regime que apostou tudo em tornar-se uma potência nuclear, em que a força política interna dos dirigentes depende muito desse compromisso estratégico nacional, se proponha abdicar desse trunfo justamente quando ele lhe acaba de ser reconhecido internacionalmente.
Claro que as sanções internacionais que impendem sobre Pyongyang, sobretudo as mais recentes articuladas com a China e que estão a afundar a economia do país, pesarão certamente na decisão de Kim de aliviar o ambiente com o Ocidente. Ou talvez Kim esteja apenas a tentar ganhar tempo para deixar passar a hostilidade de Trump e regressar ao “business as usual”. Mas sejam quais forem os seus cálculos, qualquer acordo só será possível se for totalmente verificável no terreno.
O “Guardian” revelava esta quinta-feira um estudo de cientistas chineses segundo o qual o local de testes nucleares norte-coreanos estava praticamente destruído. Situado a cerca de 100 quilómetros da fronteira com a China, o monte onde está instalado o centro de lançamento de mísseis terá ficado semi-destruído na sequência dos últimos testes ali feitos, em setembro passado. Além dos abalos sísmicos que os testes provocaram e que foram detetados na China, os cientistas falam de prováveis ondas radioativas libertadas no interior do centro que o terão tornado inutilizável.
Na impossibilidade prática de fazer mais testes, obviamente que não custa abdicar deles em público e fazer disso um trunfo político. Será essa a causa da atitude de Kim Jong-un?
Por outro lado, responsáveis japoneses chamam a atenção para o facto de Kim só ter falado em abdicar do programa de mísseis intercontinentais e nada ter dito sobre os de médio alcance. E esses são, naturalmente, aqueles que preocupam mais o Japão, a Coreia do Sul e outros países da região cujo território está ao alcance dos mesmos. Mantê-los permitiria à Coreia do Norte permanecer como uma ameaça regional poderosa, ou seja, nada de substancial se alteraria.
Donald Trump já foi, porém, claro quanto a isso. Esta semana, numa conferência de imprensa conjunta com Emmanuel Macron, o presidente americano disse que desnuclearização da península coreana significa que Pyongyang terá de abdicar de todos os mísseis que possua e de todo o programa nuclear. Nada menos do que isso poderá levar a um acordo.
O assunto está em cima da mesa na cimeira desta sexta-feira com o presidente Moon Jae-in, mas apenas como ensaio para ambas as partes. Os sul-coreanos tentam perceber se Kim Jong-un está genuinamente interessado em desnuclearizar e em que termos. Os norte-coreanos tentam perceber nos seus vizinhos do sul até onde vai a flexibilidade do Ocidente. A questão nuclear norte-coreana é um problema global e só poderá ser solucionada entre Pyongyang e Washington.
Trump já disse que Kim estava a mostrar abertura e estava a fazê-lo de forma “honrada”. Mas também já disse que se a cimeira entre os dois começar a resvalar para o vazio retórico pode abandonar a reunião unilateralmente.
Nesta sexta-feira a cordialidade impera entre os irmãos-inimigos do Sul e do Norte. E mesmo que do encontro não resulte nada de substancial, só o facto de ele ocorrer já pode considerar-se histórico.
Mas talvez seja mais do que isso. Talvez seja mesmo um ensaio histórico de uma peça ainda mais histórica a ter lugar dentro de cerca de um mês.