“Há um grito de dor que ressoa mais do que qualquer outro e está a transformar o ‘mare nostrum’ em ‘mare mortuum’, a mudar o Mediterrâneo de berço da civilização em túmulo da dignidade”, alertou o Papa na manhã deste sábado, em Marselha.
Na sessão de encerramento dos “Encontros Mediterrânicos”, o Santo Padre interrogou-se: “Quem olha com compaixão para além da própria margem a fim de ouvir os gritos de dor que se levantam do Norte de África e do Médio Oriente?”.
Perante o presidente Macron, outras autoridades francesas e bispos dos países banhados pelo Mediterrâneo, Francisco lamentou a quantidade de gente que “vive imersa na violência e padece situações de injustiça e perseguição”, incluindo "tantos cristãos, muitas vezes obrigados a abandonar as suas terras ou a habitá-las sem ver reconhecidos os seus direitos, sem gozar de plena cidadania”. E, referindo-se aos milhares de migrantes, lançou o apelo: “Por favor, empenhemo-nos para que quantos fazem parte da sociedade se possam tornar cidadãos de pleno direito”.
O Papa recordou os intercâmbios entre os povos que tornaram o Mediterrâneo “berço de civilizações e mar transbordante de tesouros” e valorizou o ‘mare nostrum’ como espaço de encontro entre as religiões abraâmicas, entre o pensamento grego, latino e árabe, entre a ciência, a filosofia e o direito, e entre muitas outras realidades.
Um Mar que é encruzilhada entre Norte e Sul, entre Este e Oeste e concentra os desafios do mundo inteiro nas suas «cinco margens»: Norte de África, Médio Oriente, Mar Negro-Egeu, Balcãs e Europa latina, um verdadeiro “espelho do mundo que traz em si uma vocação global à fraternidade, única via para prevenir e superar a conflitualidade”, afirmou.
O Mediterrâneo deve ser um laboratório de paz, com “um pensamento que não é uniforme e ideológico, mas poliédrico e aderente à realidade; um pensamento vital, aberto e conciliador: um pensamento comunitário”, afirmou. “Quanto necessitamos dele no momento atual, quando nacionalismos antiquados e belicosos querem fazer cair o sonho da comunidade das nações! Mas lembremo-nos de que, com as armas, se faz a guerra, não a paz; e com a ganância de poder volta-se ao passado, não se constrói o futuro”.
O escândalo dos contrastes
Francisco levantou a sua voz na denúncia pelos mais desfavorecidos. “O ‘mare nostrum’ clama por justiça, com as suas margens que dum lado tresandam opulência, consumismo e desperdício, enquanto do outro há pobreza e precariedade”. E acrescentou que “também aqui o Mediterrâneo espelha o mundo, com o Sul que faz apelo ao Norte: tantos países em vias de desenvolvimento, atribulados por instabilidade, regimes, guerras e desertificação, que olham para os países que estão bem, num mundo globalizado onde estamos todos conectados, mas onde os desníveis nunca foram tão acentuados.”
Neste contexto, “aqueles que se refugiam junto de nós não devem ser vistos como um peso a carregar: se os considerarmos irmãos, aparecer-nos-ão sobretudo como dons”. E contra a terrível chaga da exploração de seres humanos, “a solução não é rejeitar, mas assegurar, segundo as possibilidades de cada qual, um largo número de entradas legais e regulares, sustentáveis graças a um acolhimento equitativo por parte do continente europeu, no contexto duma colaboração com os países de origem. Pelo contrário, dizer «basta» é fechar os olhos; tentar agora «salvar-se a si mesmo» transformar-se-á em tragédia amanhã”, avisou.
Acolher os pobres, tratá-los como irmãos e não escondê-los
A Igreja e a comunidade civil devem acolher e escutar os pobres “porque são rostos, não números”, sublinhou o Papa. “A mudança de ritmo das nossas comunidades consiste em tratá-los como irmãos, cujas histórias devemos conhecer, e não como problemas molestos; consiste em acolhê-los, não em escondê-los; em integrá-los, não em desembaraçar-se deles; em dar-lhes dignidade”.
Nesta cidade de Marselha, que é “uma grande porta que não pode ser fechada”, onde desembarcam milhares de migrantes e refugiados, “o mero empenho das instituições não basta; é preciso um sobressalto de consciência para dizer «não» à ilegalidade e «sim» à solidariedade, que não é uma gota no mar, mas o elemento indispensável para purificar as suas águas”, avisou Francisco. “Com efeito, o verdadeiro mal social não é tanto o crescimento dos problemas, como sobretudo a diminuição do cuidado que se lhes presta”
Jovens sem preconceitos nem retóricas fundamentalistas
Preocupado com as próximas gerações, o Papa propôs que as universidades mediterrânicas sejam “laboratórios de sonhos e estaleiros de construção de futuro, onde os jovens amadureçam encontrando-se, conhecendo-se e descobrindo culturas e contextos simultaneamente vizinhos e diversos”. O objetivo de Francisco é “abater os preconceitos, curar as feridas e evitar retóricas fundamentalistas”, permitindo assim aos jovens uma formação orientada para “fraternizar e abrir portas inesperadas de diálogo”.
Este desafio prioritário “diz respeito a todas as idades educativas: já desde criança, «misturando-se» com as outras, podem-se superar muitas barreiras e preconceitos, desenvolvendo a própria identidade no contexto dum enriquecimento mútuo”, propôs o Santo Padre. “Para isso bem pode contribuir a Igreja, colocando ao serviço as suas redes de formação e dando vida a uma «criatividade da fraternidade»”, a par de uma "teologia mediterrânica, que desenvolva um pensamento aderente à realidade, «casa» do humano e não apenas do dado técnico, capaz de unir as gerações ligando memória e futuro, e de promover com originalidade o caminho ecuménico entre os cristãos e o diálogo entre crentes de diferentes religiões”.