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- Foi preso a ler um livro e saiu com outro escrito. Luaty lê "Sou eu mais livre, então"
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Luaty Beirão está em Portugal num périplo que inclui entrevistas, um concerto (na pele de MC Ikonoklasta), conferências e a apresentação do seu livro, um diário de prisão, "Sou Eu Mais Livre, Então – Diário de um Preso Político Angolano" (ed. Tinta-da-China).
O activista e "rapper" esteve esta quarta-feira no programa Carla Rocha - Manhã da Renascença. Luaty Beirão aceitou continuar a conversa por mais uns minutos para falar sobre o futuro de Angola depois do anúncio de que José Eduardo dos Santos não vai continuar à frente dos destinos do país, mas também das relações entre a elite local com Portugal e do futuro, agora que, como ele diz, “se tornou uma voz respeitada”.
O lusodescendente acredita na força que Portugal poderá ter na mudança que acredita ser necessária em Angola, mas deixa críticas ao fechar de olhos do poder político e económico português, “amordaçado” face ao que se passa na antiga colónia. “O dinheiro acaba por, mais do que influência, comprar silêncio. Os portugueses deviam estar muito preocupados com a origem desse dinheiro e o que traz por trás."
Já disse que o melhor seria José Eduardo dos Santos (JES) sair pelo próprio pé e que o contrário seria trágico. A notícia de que vai abdicar evita uma tragédia em Angola?
Dentro dos cenários possíveis, o menos mau é de que saia pelo próprio pé. É o que oferece menos riscos de instabilidade. A verdade é que a transição, num país que teve 37 anos no poder o mesmo homem e cuja Constituição foi feita para servi-lo e lhe dá poderes de semideus, independentemente da forma como for tentada, tem os seus riscos.
Que tipo de transição defende? Chegou a dizer em entrevistas recentes que quem vier depois pode seguir um caminho musculado porque o actual governo também o usa. Isso é aceitável?
Não é aceitável, mas é uma possibilidade. A verdade é que a pessoa que JES indigitou [João Lourenço] é um general. Ninguém sabe o que ele pensa pela própria cabeça. Sempre que as pessoas do regime falam em público são meros repetidores de uma mensagem mastigada e que já ninguém tem paciência para ouvir.
É um militar que fez a guerra e tem a mentalidade rígida do “posso, mando e faço”. Sendo agora a cabeça de cartaz, pode haver a possibilidade, que não é remota, de chegar e ter de mostrar quem manda, quem é o novo patrão, para as pessoas perceberem que a mudança de líder não implica uma mudança nas práticas.
É um receio que temos e é por isso que estamos cépticos. Não devemos celebrar efusivamente. JES é uma pessoa muito matreira que já anunciou várias coisas que não cumpre. Em Angola costumamos dizer que pisca para um lado e vira para o outro.
Uma transição suave pode acontecer quando se sabe do poder intrincado de interesses económicos que a família dos Santos tem em Angola?
Para isso não tenho uma resposta redonda. Acho que depende muito de quem o vai substituir, da mentalidade que tem, da influência que tem, de como pode gerir o corte dessas teias venenosas que se foram formando ao longo dos anos.
Não sei se a liderança anunciada poderá promover a mudança, mas não podem ser as elites só a fazê-lo. Tem de haver por parte das outras forças vivas pressão para que as coisas aconteçam. São riscos e não vai ser pêra doce.
Não se corre o risco de tudo mudar para ficar tudo na mesma? Angola suporta isso?
Um corte radical com o passado pode significar uma caça às bruxas. Só iria perpetuar as coisas num patamar em que uns têm de ser muito agressivos e os outros vão ser sempre muito agredidos.
As elites mudariam, mas o espírito de vingança continuaria. Temos de ter uma ruptura com este paradigma. Não tenho esperança de que sejam estas pessoas que estão a ser promovidas que o consigam fazer. Mas temos de lidar com elas. Não devemos defender uma ruptura abrupta, mas uma transformação paulatina. Independentemente de qual seja a transformação, há pessoas que vão sofrer consequências.
Roubaram tanto durante tanto tempo. Obviamente que para elas [as elites angolanas] as coisas não vão ser fáceis. Podia-se condicionar essas pessoas com o dinheiro ao investi-lo em Angola. Eles são todos péssimos gestores. Apenas estão habituados a pôr a mão no saco. Seria uma forma de o dinheiro que têm se disseminar pela sociedade. Se assim fosse, podíamos em algum tempo recuperar o dinheiro roubado.
Portugal pode ter um papel nesse futuro de Angola ou não é sequer desejável que tenha?
Pode e deve. Não é desejável para alguns, sobretudo para os que acham que um país não deve meter o bedelho nos negócios do outro. A nível diplomático há muitas coisas que se podem fazer sem ser agressivo. Há portas que se podem fechar e negócios que se podem não fazer se se meter em primeiro a ética que deixou de haver na política. Cabe aos portugueses cobrar às suas elites governativas. Foi o que aconteceu ao longo do nosso processo [prisão do grupo dos 17 activistas em Junho de 2015 por supostos “actos preparatórios de rebelião”]. Se não fosse a pressão dos movimentos de cidadania que se formaram aqui, não sei se teria sido visitado pelo representante da embaixada de Portugal em Angola [na clínica Girassol, durante a greve de fome de 36 dias].
Sempre que há atritos entre os dois países, o passado colonial regressa quase sempre à discussão. Apesar de todo o tempo que passou, de milhares de discursos que falam da amizade e união dos povos, essas cicatrizes ainda estão presentes no povo ou é uma arma de arremesso da elite política?
É um discurso promovido pelos políticos. Mas é evidente que às tantas, depois de tanto se martelar, algumas pessoas ficam contagiadas. As diferenças de opiniões vão sempre existir. Por mais conturbada que tenha sido a relação noutros tempos, temos de olhar para a frente. Para mudar a mentalidade há que promover o envolvimento de outros agentes sociais.
Têm que se promover as bolsas de estudo, isso ajuda a aliviar o ambiente. Há que ter artistas angolanos que vêm a Portugal, artistas portugueses que vão a Angola. Mas isso parece não ser muito trabalhado por órgãos que gastam tanto dinheiro como a CPLP [Comunidade de Países de Língua Portuguesa]. Mas parece que só as relações económicas são importantes.
Elas são cada vez mais evidentes e com mais peso. Como vê a participação de Isabel dos Santos [filha do Presidente da República de Angola] em várias empresas portuguesas?
Para mim é preocupante. Pode-se dizer que ela faz o que quer com o dinheiro. E também há quem pense que investir em Portugal nos sectores chave dá às pessoas com ressabiamento em relação ao passado colonial o sentimento de "agora somos nós a colonizar", mas isso é uma estupidez. Preocupa-me que o dinheiro dos angolanos seja apropriado por uma pessoa, que tem facilidades pelas relações óbvias que tem com o Presidente da República, e que Portugal esteja de portas abertas para isso. Por mais dificuldades que estejam a passar, sabem que é um dinheiro de corrupção e sujo.
Acredita que esses investimentos são para comprar influência política?
Sim, claro que sim. Este é um país de liberdades, mas sei de pessoas que não me entrevistam, não por falta de interesse mas porque as empresas que detêm esses órgãos de comunicação social têm ligações com Angola e os directores não deixam que os jornalistas façam o seu trabalho.
Em Angola, isso acontece em todos os sectores da sociedade. O dinheiro acaba por, mais do que influência, comprar silêncio. Os portugueses deviam estar muito preocupados com a origem desse dinheiro e que é que ele traz por trás.
Sente que em Portugal o discurso sobre Angola é condicionado?
Claro que sim, há uma mordaça.
Considerou várias vezes o seu julgamento e dos outros 16 activistas uma farsa, uma encenação. Em Portugal, o processo contra um conjunto de generais angolanos fez correr muita tinta sobre a relação entre os dois países. Como viu esse caso?
É recorrente haver alguns casos em Portugal contra figuras ligadas ao poder angolano e infelizmente o fim é sempre o mesmo: os casos acabam por ser arquivados. Tenho menos propriedade para falar da maior ou menor isenção da justiça portuguesa, mas, quando todos sabemos que há dinheiro sujo a ser debitado aqui e que há empresas portuguesas a serem conduzidas à falência por causa das sucursais angolanas que depois têm de ser resgatadas com dinheiro dos contribuintes portugueses, é algo frustrante, para quem o sente no bolso, que não haja culpados.
Não posso avaliar categoricamente, mas tenho a impressão de que haverá um fechar de olhos e de influência do poder político na justiça. É a percepção que tenho e espero estar errado.
Eu já beneficiei disso no caso da cocaína, em que fui apanhado com dois quilos [no aeroporto de Lisboa. Luaty denuncia ser alvo de uma cilada pelas autoridades angolanas]. O juiz foi muito mais benevolente do que seria noutro caso em que tivesse de aplicar a lei pura e simplesmente. Aplicou-me uma medida de coacção que a escrivã disse que em 20 anos nunca tinha visto para um caso daqueles: Termo de Identidade e Residência.
Esse foi um dos casos em que acusa o governo de o condicionar... Houve outros graves?
Foi o mais relevante porque eles tentaram transferir a responsabilidade da minha prisão para a justiça portuguesa, sabendo que a justiça angolana não é credível. Penso que isto devia ter causado mais celeuma porque me parece extremamente grave que um regime, governo, usando as suas forças policiais, tente puxar um truque destes para que os órgãos policiais de outro país sejam apanhados numa cilada contra um seu cidadão [Luaty tem dupla nacionalidade angolana e portuguesa].
No “Jornal de Angola”, um editorialista escreveu que "numa foto difundida por um semanário português, Luaty Beirão assemelha-se a um putativo terrorista árabe responsável pelos atentados de Paris. O velho ditado diz que ‘quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele’”. É assim que é visto?
Já nos chamaram de arruaceiros, de frustrados, de pessoas sem sucesso académico, mas terroristas é raro. Sobre o “Jornal de Angola” dizemos que a única coisa verdadeira é a da necrologia e a data. Consegue-se ali descortinar o que pensa o poder político porque é um panfleto do partido [MPLA]. Não conhecia essa comparação, mas eles tentam sempre minimizar e diminuir as pessoas. Mas não me incomoda, faz-me rir.
JES está no poder há muitas décadas, é uma personalidade marcante. O que é que já transferiu para o povo angolano e que vai ficar?
A trágica conformação de que os políticos são os poderosos, de que são quem manda e que nós temos que obedecer. E também a confirmação de um trecho da Bíblia que diz que os nossos políticos são escolhidos por Deus. Como a religião está muito enraizada em Angola, as pessoas aceitam-no dessa forma e respeitam. Isso é trágico. Mas acho que as marcas se podem diluir com as gerações vindouras, tal como aconteceu em Portugal [depois de décadas de poder de António de Oliveira Salazar].
Num jornal económico português foi escrito que o legado que JES deixa “é contraditório. Foi capaz de fazer a paz e sarar as feridas resultantes de uma guerra civil dolorosa e iniciou uma gigantesca tarefa de reconstrução do país, mas não travou a ganância que se disseminou pelos corredores do poder”. Concorda?
Resumir 37 anos de poder numa leitura de duas frases é muito complicado. É um exercício louvável, mas é sempre redutor.
Ele podia ter saído pela porta grande depois de acabar a guerra civil, mas escolheu continuar a enredar-se na sua teia. O clientelismo está a virar-se contra ele. Ele podia ser lembrado pelo que conseguiu: levar o país à paz.
Mas lembre-se que o MPLA só cedeu à democracia por causa das pressões. Havia a UNITA, que o exigia, e o quadro da Guerra Fria alterou-se, houve a queda do muro de Berlim e a “Perestroika”. Havia uma luta feroz. Não houve uma inversão de mentalidades. O JES não passou a ser democrata do dia para noite, ele próprio assume que a democracia foi imposta.
Tenho pena que ele tenha de acabar assim. Ele está muito doente. É visível. Não lhe desejo mal. Gostava que ele desfrutasse dos últimos anos porque ele dedicou, mal ou bem, tantos anos a governar aquele país. Governou-se a ele e aos familiares. Mas não desejo mal a ninguém, muito menos a uma pessoa que está afectada.
É filho de João Beirão, primeiro presidente da Fundação Eduardo dos Santos. Conhece o âmago da elite angolana. Há algo que a distingue de outras?
Cresci dentro da elite angolana, mas não conheço as outras. Mas diria que é a soberba e a prepotência dos novos-ricos e dos endinheirados que acham que tudo podem. E que tudo o que querem, o dinheiro pode comprar.
“Sempre fui muito desconfiado em relação à política como ciência e aos políticos que fazem da política profissão”. Costuma dizer coisas como esta muitas vezes. Mas qual é a alternativa? Em quem devemos confiar então?
Acho que podemos todos pensar em formas originais de diminuir o impacto que os partidos têm na vida da sociedade. Pode ser com pequenas coisas, como na Islândia, em que estão a pôr cidadãos na Assembleia.
Mas essas pessoas não acabam por se tornar em políticos?
Não sei, vamos ver. Mas é preciso experimentar.
Se se actua sobre os problemas colectivos não se está sempre a fazer política?
Sim, mas assim os artistas são políticos e quem faz uma reclamação também. Mas eu referia-me aos políticos profissionais, carreiristas, e que não vão para defender os interesses daqueles que representam, mas com intenções de salvaguardar a sua rede de interesses e que se tornam em facilitadores. É nesses em quem não confio.
Já disse que coloca "completamente de parte" a hipótese de usar a sua notoriedade social para formar um partido. "Depois de sairmos da prisão, já me sugeriram essa ideia umas 1.500 vezes. Não me agrada minimamente. Pode ser que mude de ideias mais para a frente, mas, para já, não", disse. O que é que o faria mudar de opinião?
Não sei dizer. Tenho para já a convicção de que esse não é o caminho a seguir. Mas já vivi o suficiente para ter aprendido a não dizer que dessa água não beberei. Para já não é uma opção, não a considero nem remotamente. Mas dizer que nunca o vou fazer....
Seria ingénuo....
Seria. Não sei o que seria necessário, as coisas teriam de acontecer de uma forma que eu não estou a prever.
O que seriam essas coisas?
Em Angola não pode haver candidaturas independentes e não pode haver uma boa surpresa para 2017. Temos de lidar com as forças políticas que temos, por mais frágeis que sejam. E são. Há pessoas nos dois principais partidos da oposição, há quem tenha valor e sentido patriótico, e fazer diferente não é difícil porque está tudo mal e por corrigir.
Mas o mais importante agora é as pessoas perceberem a possibilidade de haver uma alternância. Temos de aceitar o que temos. É uma porcaria, mas é o que temos.
Apesar de todo o mediatismo da vossa luta, a verdade é que, segundo já disse, as vossas reuniões continuam a atrair apenas poucas dezenas de pessoas. Porquê?
Existe um “boom” da solidariedade e do posicionamento das pessoas, mas não de as pessoas dizerem presente e correrem os riscos de apanharem porrada, serem presas, perderem o emprego.
Isso tem de ser lido à luz da natureza do próprio regime, que consegue manter as pessoas intimidadas com a sua demonstração de opulência e brutalidade.
Há pessoas que se assumiam como sendo do outro lado e algumas até publicamente começam a criticar. Isso é indício de algo que se pode estar a cozinhar. Será um processo, tem de se desconstruir o que foi implementado durante décadas e fazer com que as pessoas desafiem os próprios métodos.
Teme que as pessoas o julguem apenas com base na greve de fome?
Vai existir sempre [quem o faça], basta ver onde estão as multidões e elas estão nas notícias cor-de-rosa e nos dramas. Mas espero que haja outro grupo de pessoas importante que consiga absorver o resto. E o resto explica a greve de fome.
Mas terei de aceitar e a maior parte das pessoas não tem muito tempo para conhecer as pessoas em profundidade e foca-se nas pequenas coisas mais mediáticas.
Quando se deixa de se representar apenas a si próprio e se passa a representar as ânsias e os sonhos de outros há o risco de nos endeusarmos e o ego crescer de uma forma em que se perde a noção da realidade? Sentiu isso alguma vez?
Nem toda a gente sabe lidar com esse tipo de atenção e responsabilidade. Gostaria que as pessoas não se deixassem endeusar, levitar e perdessem a noção da realidade. Tenho isso presente. Sei que é um risco real e espero tê-lo sempre presente e que me alertem quando algo estiver a acontecer.
Acho que, a partir do momento em que isso acontece, a nossa luta perde parte do sentido e passa a ser mais a vaidade pessoal pelo que consegui e represento para as pessoas, do que o que eu realmente defendo. Perde-se o foco na conquista de mais espaço para a generalidade das pessoas.
Gostava que os meus companheiros conseguissem resistir a essa importância que nos é dada, mas não sei se eu próprio serei capaz. É um risco real. Gostava de conseguir, mas é um exercício permanente resistir ao insuflar de ego.