Pedro Latoeiro e Filipe Domingues são amigos há muitos anos e costumam tomar o pequeno-almoço juntos uma vez por semana. Ex-jornalistas, hoje envolvidos em funções relacionadas com a diplomacia, entusiasmaram-se com a eleição de António Guterres para secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU).
De um desses pequenos-almoços nasceu a ideia de escreverem uma biografia do antigo primeiro-ministro. Cinco anos e 120 entrevistas depois, o livro com 700 páginas é colocado esta terça-feira à venda.
"O mundo não tem de ser assim” é uma edição da Casa das Letras e está dividido em quatro partes: o início da carreira política de António Guterres, os mandatos como primeiro-ministro, a missão à frente do Alto Comissariado para os Refugiados (ACNUR) e a eleição para secretário-geral das Nações Unidas.
Como é que se desenrolou o processo para a concretização deste livro?
Filipe Dominges – Foi muito simples, mas não foi necessariamente fácil. Por vários motivos e um deles prende-se com um traço de personalidade do atual secretário-geral das Nações Unidas e que nós tentamos demonstrar no livro logo nas primeiras páginas: é que ele não é vaidoso. Quantos políticos não fazem questão de ter a sua biografia? Foi exatamente ao contrário: demorarmos quase um ano a demonstrar com trabalho – com entrevistas sérias, com grandes amigos dele, com personalidades que o conhecem – que estávamos de facto empenhados e comprometidos em fazer uma obra objetiva, imparcial... Partimos para isto com uma agenda positiva porque não é qualquer cidadão do mundo que chega a secretário-geral das Nações Unidas. Já tínhamos feito perto de 60 entrevistas na altura em que, finalmente, António Guterres decidiu e aceitou receber-nos em Nova Iorque. Fomos a Nova Iorque de propósito só vender o projeto e para ele ver as nossas caras. Não tínhamos qualquer relação com ele, ele não fazia ideia de quem nós eramos e tivemos uma conversa de meia hora, 45 minutos no gabinete dele e, de alguma maneira, ele ficou convencido das nossas intenções e da perspetiva que queríamos dar a este livro
É mesmo verdade aquilo que Guterres diz: que não tinha intenção nenhuma de escrever memórias e não guarda documentos, registo?
Pedro Latoeiro – É absolutamente verdade e tivemos a prova viva de que assim é porque na fase final de montagem do livro. António Guterres deu-nos acesso ao seu acervo fotográfico, que é enorme e estamos convencidos que ele nunca olhou para aquelas fotografias. Estamos a falar de um acervo onde estão Fernando Henrique Cardoso, Jose Maria Aznar, o presidente Bill Clinton... é um acervo fotográfico que conta a história internacional dos últimos 40 anos e ele não ligou nenhuma à quelas fotografias.
E vocês também falaram com uma parte dessa história internacional recente. Com quem é que falaram?
FD – São mais de 120 entrevistas com muitas personalidades portuguesas, inclusivamente membros do governo, mas também altos funcionários das Nações Unidas, diplomatas, antigos chefes de Estado. Mesmo a alto nível, falámos com Jean Claude Juncker, François Hollande, com Gerhard Schröder, Fernando Henrique Cardoso, Jose Maria Aznar, personalidades de altíssimo nível a quem – e isso também nos surpreendeu – facílimo termos acesso quando dissemos "estamos a escrever a biografia do secretário-geral das Nações Unidas, gostávamos de marcar uma entrevista". Poucos dias depois tínhamos respostas positivas. Isto também diz muito sobre o que é a personalidade do António Guterres e a rede de amigos e de pessoas que o têm em boa conta.
Foi a referência a Guterres que abriu essas portas?
PL – Absolutamente. Uma das coisas que nos surpreendeu nos quase cinco anos que dedicámos a este livro é o elevadíssimo prestígio internacional de António Guterres, sobretudo pelo trabalho que tinha desenvolvido nos 10 anos como alto-comissário para os refugiados. É um político de alto nível e, diria, sem inimigos.
Têm noção que Guterres é mais reconhecido lá fora esse perfil de alto nível do que cá dentro?
FD – Sem duvida nenhuma. Isto para nós foi uma aprendizagem avassaladora: a quantidade de figuras internacionais de altíssimo nível cujo dia a dia é lidar com outras figuras internacionais brilhantes, todos eles consideram que António Guterres está noutra liga em termos de conhecimento das pastas, de eloquência, de capacidade empática, de capacidade de liderança. Se alguns dos melhores do mundo consideram que, mesmo em comparação com eles próprios, António Guterres está noutra liga, enfim quem somos nós para acrescentar algo mais sobre isto.
Já falaram dos 10 anos como alto-comissário para os refugiados. Na campanha eleitoral de 1999, António Guterres já estava com olhos nesse lugar, chegou a confidenciar a jornalistas que era o cargo que gostava de ter. Nas conversas que foram tendo para este livro, foram percebendo que esse segundo governo Guterres, que nasce das eleições de 1999, já foi feito com um olho no palco internacional?
PL – Não vou duvidar que ele tenha dito isso a alguém, mas a vaga de alto-comissário para os refugiados torna-se disponível por um evento absolutamente imprevisível. Ele próprio admite no livro que era um cargo que lhe agradava. Acho que, a partir de 1999, nos dois anos que durou o segundo governo de António Guterres forma-se uma espécie de tempestade perfeita que começa com a enorme desilusão que foi não ter a maioria absoluta quando o próprio PS tinha indicação de que poderia ganhar com mais de 10 deputados. Esse mandato começa mal, são feitas más escolhas para o governo, o próprio Guterres reconhece isso no livro. E depois também há um fator a que damos relevância e que hoje há quem compare com a situação atual: a presidência portuguesa da União Europeia de 2000 tira o primeiro-ministro das pastas nacionais, ele está seis meses completamente concentrado na presidência que tinha um perfil diferente do que têm agora as presidências. São dois anos maus que acabam como sabemos.
O livro dedica-se sobretudo à vida política e pública de António Guterres. Daquilo que foram percebendo, inclusive nas conversas que tiveram com ele, o que é que foi determinante na formação de Guterres para dar este político que hoje conhecemos?
FD – Várias dimensões. António Guterres é uma figura altamente complexa. Uma dessas dimensões que é sobejamente conhecida é ele ser de facto um católico e um cristão profundamente convicto. Contamos até com detalhe uma conversa que tivemos com ele em que ele conta como é que foi a experiência espiritual dele ao ler o Alcorão. Ele leu o Alcorão enquanto alto-comissário para os refugiados e faz-nos o paralelismo das descobertas que fez das escrituras islâmicas em comparação com aquilo que eram e continuam a ser as convicções católicas profundíssimas dele. É uma conversa absolutamente reveladora da atitude espiritual e de fé e, ao mesmo tempo, filosófica e humanista de António Guterres.
Outro aspeto é que, como bom político, um homem muitíssimo ambicioso. Portanto, ele persegue com muito profissionalismo e com muita determinação os objetivos de longo prazo que define.
Ambicioso e não vaidoso? São duas caraterísticas que muitas vezes associamos e associamos aos políticos.
FD – Uma vez durante a campanha para secretário-geral das Nações Unidas, foi questionado por media portugueses sobre as razões da sua candidatura e ele dá uma resposta lacónica: por causa da Parábola dos Talentos [uma história contada no Evangelho segundo S. Mateus em que Jesus dá o exemplo de um proprietário que deixa moedas a três dos seus empregados e premeia os dois que as fazem render e castiga o que guardou a moeda com medo de a perder]. No livro, contamos com pormenor o que é que isto significa; o choque pessoal que ele teve quando leu a Parábola dos Talentos que é uma narrativa universal e toda a gente devia ler. É um daqueles momentos que mudou a vida de António Guterres e que faz com que a ambição política dele esteja muito relacionada e muito baseada neste dever de missão, que vem das convicções religiosas dele. Depois terá características que todos os políticos têm: frieza de análise, ter de fazer sacrifícios porque há, muitas vezes, um bem maior. A rutura com Francisco Salgado Zenha, por exemplo, foi uma decisão de político, fria.
Para quem conheça Guterres das notícias em que é que pode ser surpreendido?
PL – Em várias coisas. desde logo pelos depoimentos do próprio Guterres, é ele que fala sobre o que foi toda a sua vida política e o percurso humanitário. Acho que a parte da religião é muito importante e está presente em todo o livro. A religião como dever de ação que é algo que o une ao Papa Francisco e está na base da visita que faz à sinagoga de Amsterdão, nos 500 anos do édito de expulsão dos judeus, é algo que está no trabalho dele no ACNUR onde teve de lidar com uma torrente de refugiados que vinham sobretudo de países islâmicos. Um dos meus capítulos preferidos que é o "Fé e proteção" que fala de um discurso que, no meu entendimento, é dos mais marcantes da vida de António Guterres onde ele sintetiza o dever de ajudar o outro e a forma como esse dever está presente em todas as grandes religiões. O António Guterres, desde que foi alto-comissário para os refugiados, em cada ano visita um país muçulmano e comporta-se como um muçulmano. Esse lado religioso como dever de ação, mas também com um enorme espírito inter-religioso é algo que pode ser surpreender os leitores.
FD - Comporta-se como um muçulmano no sentido em que faz jejum, cumpre as horas das orações.
O que foi mais difícil?
PL – Foi feito um esforço enorme para fazer um livro apontado a uma audiência internacional porque o livro vai ser publicado também no estrangeiro. Tivemos de fazer uma enorme esforço desde o inicio para ter uma narrativa escrita num tom universalista, não para um leitor português, mas para um leitor que tem de perceber o que foi o comício da Alameda, a questão de Timor-Leste .....
O Pedro já disse qual é o seu capítulo preferido. Qual é o do Filipe?
FD – Não é um capítulo, mas uma parte. A última parte em que revelamos com todo o detalhe como é que se elege um secretário-geral das Nações Unidas e porque nos deu um enorme gozo descobrir as gigantes e complexas jogadas de bastidores tanto para boicotar a candidatura de António Guterres e as contra táticas da candidatura.
António Guterres já leu o livro?
PL – António Guterres foi, a nosso pedido, o primeiro leitor deste livro. Mas fique claro que é um projeto totalmente independente e o próprio Guterres fez questão desde o primeiro dia de não ter qualquer participação nem influencia a não ser as entrevistas que nos deu.
FD – Já depois de ele ter lido o livro, até pelo estilo que escolhemos de contar como uma história com registo universalista, ele disse "Bom, não era isto que estava à espera, mas admito que possa ficar melhor assim".