Depois de muitas ameaças desde a implementação do acordo de cereais há um ano, a Rússia acabou mesmo por suspender, esta segunda-feira, o pacto que assegurava a exportação desta importante matéria-prima alimentar para o resto do mundo. O futuro é incerto, ainda que uma reunião com a Turquia marcada para esta tarde possa, ainda, salvar o acordo.
Apesar dos apelos de agências da ONU, assim como do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, bem como de ministros da Agricultura da União Europeia (UE), o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, anunciou a suspensão da Iniciativa Grãos do Mar Negro – como o acordo é oficialmente conhecido -, alegando que houve compromissos não cumpridos relativamente à retirada das sanções ao Banco Agrícola Russo.
O acordo, assinado entre a Ucrânia e Moscovo, com a mediação da Turquia e das Nações, em julho de 2022, terminava esta segunda-feira, depois de repetidos prolongamentos. O pacto abrangia a exportação de cereais ucranianos e ainda fertilizantes e produtos alimentares russos.
Qual a importância do acordo?
A Ucrânia era, muitas vezes, chamada de “celeiro da Europa”, tal é a sua importância na produção alimentar do Velho Continente, assim como do mundo. Os cereais ucranianos alimentam cerca de 400 milhões de pessoas, de acordo com os dados do Programa Alimentar Mundial, o que fez muitos países recear uma fome ou, no mínimo, uma escalada dos preços da comida provocada pela invasão que a Rússia levou a cabo.
A invasão provocou, efetivamente, a receada escalada de preços, para a qual contribuiu o bloqueio russo do Mar Negro, que resultou em milhões de toneladas de cereais ficarem bloqueados nos silos na Ucrânia. Agora, esse risco regressa.
E se for, de facto, suspenso?
No último ano, o pacto permitiu exportar cerca de 33 milhões de toneladas de cereais para os portos mundiais, o que aliviou os agricultores ucranianos e os países com maior insegurança alimentar no mundo. Ainda assim, esse valor representa apenas cerca de metade do que a Ucrânia exportava antes da invasão, cerca de 5 milhões de toneladas por mês.
O número de navios a operar no Mar Negro no âmbito do pacto tem diminuído. O acordo estipula que os três países envolvidos – Turquia, Ucrânia e Rússia - devem, em conjunto com a ONU, aprovar e inspecionar os navios. Enquanto foram exportadas, em outubro de 2022, 4,2 milhões de toneladas de cereais, o valor já tinha descido para 1,3 milhões de toneladas em maio de 2023.
A Rússia não regista novos navios desde 26 de junho, e Kiev acusa Moscovo de abrandar de forma deliberada as inspeções, uma prática que inflaciona os preços e beneficia a Rússia como exportador rival.
Se o acordo não for prolongado novamente, o custo elevado do seguro de um navio que navega no Mar Negro pode complicar a situação, com as empresas a optarem tendencialmente por deixar de realizar essa rota.
Exportar os cereais por terra também não é tarefa fácil. Apesar da ligação por terra à União Europeia já ter servido para o transporte de milhões de toneladas de cereais desde fevereiro de 2022, as carruagens existentes para comboios de mercadorias são insuficientes para a produção ucraniana.
Luís Mira, da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), diz que o bloqueio “pode levar à subida dos preços no mercado mundial”, apesar da invasão russa da Ucrânia ter levado os operadores portugueses a virarem-se para outros mercados, como o da América do Sul, a partir de onde o transporte já é mais caro.
Há alternativa para exportar os cereais?
O jornal Politico aponta uma possível solução: a escolta dos navios com cereais ucranianos pela Marinha turca.
A especulação surgiu depois de negociações entre Recep Tayyip Erdogan, Presidente da Turquia, e Volodymyr Zelensky, em Istambul. O embaixador ucraniano na Turquia, contudo, negou essa possibilidade, considerando que “a Turquia nunca vai entrar em confronto aberto com a Rússia”.
O uso de rotas alternativas no Mar Negro, como a partir do porto da cidade romena de Constança, é difícil de levar a cabo, já que não existe capacidade instalada para lidar com todo o cereal da Ucrânia sem bloquear as exportações da Roménia.
Outra hipótese, talvez mais exequível, é a possibilidade de a própria Ucrânia criar um fundo de garantia de 500 milhões de dólares para pagar danos e despesas dos navios que transportem os cereais, funcionando como uma apólice do próprio Estado ucraniano.
Por outro lado, a Ucrânia pode vir a optar por transportar mais cereais pelo rio Danúbio, sendo que atualmente exporta cerca de 2 milhões de toneladas por esta via. Contudo, esta quantidade pode ser duplicada, de acordo com Mykola Gorbachov, presidente da Associação Ucraniana de Cereais.
Que solução diplomática?
O Presidente da Turquia acredita que a querela pode ser resolvida pela via diplomática.
Depois do encontro com Zelensky, Erdogan disse aos jornalistas que acredita que Vladimir Putin quer prolongar o acordo, adiantando que os dois vão discutir a renovação em pessoa, num encontro em agosto.
Contudo, não há novidades oriundas de Istambul, onde diplomatas turcos e das Nações Unidas têm estado, nos últimos dias, a tentar persuadir Moscovo a assinar uma extensão do pacto.
O resultado do fim da Iniciativa Grãos do Mar Negro pode ser mesmo a exportação dos cereais ucranianos por vias alternativas.