​Russos interferiram na campanha americana com intuito de ajudar Trump, concluiu a CIA
10-12-2016 - 08:59
 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Objectivo de Moscovo não era apenas descredibilizar o sistema eleitoral. Visava prejudicar Clinton. Computadores do Partido Republicano também foram pirateados, mas nada foi revelado. Trump acusa CIA de estar a fazer política interna.

A Rússia interferiu na campanha eleitoral americana com a intenção clara de ajudar Donald Trump e não apenas com o intuito de descredibilizar o sistema eleitoral e a democracia nos Estados Unidos.

A conclusão é da CIA e foi comunicada a alguns senadores num encontro à porta fechada que decorreu na semana passada, no Capitólio. Numa avaliação secreta ao processo de ingerência da Rússia através de “hacking” (pirataria informática) na campanha eleitoral, nomeadamente nos servidores do Partido Democrático donde foram retirados milhares de emails divulgados nas semanas anteriores às eleições, as agências de espionagem americanas concluíram que o objectivo dessas acções foi prejudicar a campanha de Hillary Clinton e favorecer a de Donald Trump.

A CIA e outras agências de “intelligence” identificaram um conjunto de indivíduos com ligações ao Kremlin que forneceram ao site Wikileaks os milhares de emails provenientes do Comité Nacional Democrático, incluindo os emails do director de campanha de Hillary, John Podesta.

Segundo funcionários americanos citados sob anonimato pelo “Washington Post”, esses indivíduos são personagens conhecidas da comunidade de espionagem e a sua acção fez parte de uma operação mais vasta para impulsionar a campanha de Trump e atingir a de Clinton.

“A avaliação da comunidade de espionagem é que o objectivo da Rússia era favorecer um candidato em detrimento do outro, ajudar Trump a ser eleito. Essa é a visão consensual” a que chegaram as agências, revelou ao “Post” um alto funcionário que assistiu ao briefing da CIA aos senadores.

Os agentes que conduziram o briefing explicaram que a informação recolhida proveio de “múltiplas fontes” e que para eles era agora “bastante claro” que o objectivo da Rússia era eleger Trump.

Esta conclusão não foi, contudo, subscrita pelas 17 agências de “intelligence” americanas por haver “divergências menores” entre elas, nomeadamente sobre a relação entre as fontes que forneceram os emails ao Wikileaks e o Kremlin.

Não há provas de que tenham sido funcionários do Kremlin a dirigir a operação de “fuga” dos emails, mas sim pessoas que estão a “um passo” de distância do Governo russo, uma prática habitual de Moscovo para poder sempre negar estas operações com um mínimo de plausibilidade, segundo as fontes do “Post”.

Julian Assange, o responsável pelo Wikileaks, disse numa entrevista recente que “o Governo russo não era a fonte” dos emails em causa.

Uma investigação paralela permitiu, de certo modo, confirmar os dados desta. É que Moscovo também penetrou nos computadores do Partido Republicano, mas nunca revelou nada do que ali terá pirateado. Segundo o “New York Times”, a espionagem americana tem um “alto grau de confiança” que ambos os partidos foram alvo de intromissão russa.

O facto de só terem sido revelados emails incómodos para o Partido Democrático vem reforçar a tese da intenção de Moscovo de ajudar Trump e prejudicar Clinton. Fontes republicanas, contudo, desvalorizaram o assunto dizendo ao “New York Times” que no seu caso só foram pirateados computadores pessoais e não os do partido ou da campanha.

A CIA e outras agências de espionagem já tinham acusado publicamente Moscovo de ingerência na campanha presidencial com o objectivo de descredibilizar o sistema eleitoral e lançar dúvidas sobre a seriedade dos resultados.

Obama tentou consenso

Em 7 de Outubro, o Kremlin foi oficialmente acusado de “intrusões electrónicas” pela comunidade de “intelligence” americana, numa alusão ao “hacking” que tinha sido praticado nos computadores do Comité Nacional Democrático. Mas nessa altura, em plena campanha eleitoral, nenhuma das agências foi ao ponto de dizer que o objectivo da Rússia era favorecer um dos candidatos.

Desde então o Presidente Barack Obama foi muito pressionado, sobretudo por democratas, para ordenar uma investigação exaustiva ao que se estava a passar na campanha e eventualmente retaliar sobre a Rússia.

Mas Obama teve relutância em fazê-lo por duas razões essenciais: uma escalada com o Kremlin nesta matéria poderia deixar os EUA ainda mais vulneráveis às acções de intrusão electrónica de Moscovo, já que a infraestrutura digital americana é muito mais vasta do que a russa; e depois porque fazê-lo em plena campanha eleitoral suscitaria certamente suspeitas de que a Casa Branca agia para favorecer a candidatura de Hillary Clinton.

Por isso, o Presidente decidiu que só avançaria se houvesse consenso bipartidário e o secretário de Segurança Interna, o director do FBI, e uma assessora da Casa Branca tentaram conseguir junto dos republicanos no Congresso apoio político para uma tomada de posição contra Moscovo, denunciando a gravidade da situação.

As provas da interferência russa na campanha convenceram os democratas, mas não alguns republicanos, que se recusaram a tomar uma posição pública contra Moscovo, levantando dúvidas sobre as provas de ingerência.

Mitch McConnell, o líder da maioria republicana no Senado, deixou claro que consideraria qualquer posição pública da Casa Branca sobre o assunto uma atitude partidária em plena campanha eleitoral. Outros argumentaram que tal atitude só minaria ainda mais a credibilidade do sistema e acabaria por jogar a favor de Moscovo. Quem se mostrou determinado a ir até ao fim na denúncia foi o senador Lindsey Graham, um republicano crítico de Trump.

Perante a ausência de consenso, Obama optou por nada fazer, apesar de a ameaça não ter precedentes. As grandes potências espiam-se mutuamente, como é óbvio, mas não há registo de um país ter interferido na campanha eleitoral de outro da forma como Moscovo agora fez.

A relutância de Obama gerou descontentamento entre os democratas e alguns apoiantes de Clinton viram-na como mais uma prova do excesso de cuidados de Obama em enfrentar os adversários.

Adam Schiff, um democrata da Califórnia que integra a Comissão de Intelligence da Câmara de Representantes, disse ao “Post” que “a administração tem todos os instrumentos de que necessita para responder. Pode impor sanções. Pode adoptar acções clandestinas. A administração decidiu não as usar de modo a deter os russos e eu acho que isso é um problema”.

Após as eleições, a pressão para que tudo fosse esclarecido intensificou-se, com senadores democratas a pedir ao presidente, na semana passada, para desclassificar a informação e revelar os pormenores da operação russa. E esta semana outros congressistas pediram mais esclarecimentos.

Esta sexta-feira, finalmente, o presidente ordenou “uma revisão completa” ao caso e quer um relatório final antes de abandonar a Casa Branca, a 20 de Janeiro.

Fê-lo no mesmo dia em que, umas horas mais tarde, já madrugada de sábado em Portugal, o “Washington Post” revelava as conclusões da CIA sobre a operação. Conclusões que, embora tenham sido comunicadas a vários senadores na semana passada, não tinham ainda chegado ao domínio público. Não é de excluir, porém, que a revisão do processo agora ordenada por Obama possa trazer novos dados a público.

Trump acusa CIA

Após estas revelações, o gabinete de transição de Donald Trump emitiu um comunicado com apenas três linhas, que vale a pena citar na íntegra: “Estas são as mesmas pessoas que disseram que Saddam Hussein tinha armas de destruição maciça. A eleição acabou há muito tempo com uma das maiores vitórias de sempre no Colégio Eleitoral. Agora é tempo de avançar e fazer a América grandiosa de novo”.

De uma penada, Trump passa um atestado de incompetência à CIA e acusa a agência de estar a fazer política. Invocar o argumento das armas de destruição maciça no Iraque equivale a dizer que, tendo cometido esse erro há 13 anos, a agência nunca mais teve credibilidade e a informação que recolhe não merece qualquer confiança. Isto dito por alguém que está a quarenta dias de assumir a presidência do país mina por completo a relação de trabalho que um presidente tem de ter com a CIA de cuja “intelligence” depende substancialmente para tomar decisões.

E o argumento de que a campanha acabou há muito tempo equivale a dizer que a CIA está a fazer política partidária, uma acusação grave a uma agência que está legalmente impedida de operar no próprio país e que mantém uma posição institucional de neutralidade em relação a questões internas.

Não é a primeira vez que Trump põe em causa as informações reveladas pela CIA neste caso da pirataria informática de Moscovo. Quando em Outubro a agência informou que tinha sido a Rússia a piratear os computadores do Comité Nacional Democrático, o então candidato republicano disse em comícios que não acreditava que fosse a Rússia, que “tanto podia ser a China, como algum tipo de Nova Jérsia”. Frase que repetiu esta semana à revista Time.

Mas uma afirmação destas feita no calor da campanha eleitoral por um candidato a presidente tem naturalmente um peso diferente de um comunicado oficial emitido pelo gabinete de transição de um presidente eleito. E desta vez nem sequer estamos a falar de um tweet, onde o carácter impulsivo de Trump costuma reflectir-se. Um comunicado, mesmo só de três linhas, pressupõe que tenha sido objecto de alguma ponderação interna.

Mas tenha sido ou não, há um local onde ele não será certamente esquecido tão cedo: no seio da agência visada.