A experiência de austeridade sem resultados práticos visíveis levou muitos portugueses a perderem a confiança nos políticos, diz D. António Francisco dos Santos, que cumpre esta semana um ano enquanto bispo do Porto.
"Precisamos de uma forma nova de ser líder e de ser protagonista, de ser governante e de ser responsável deste país", diz numa entrevista para ouvir na Renascença esta quarta-feira às 23h00. Uma nova forma que passa por "dizer a verdade" aos cidadãos.
Portugal viveu um período de ajustamento que, dizem as próprias estatísticas, aumentou as assimetrias, sitiou a classe média e fez aumentar o número de pobres. À crise económica junta-se ainda uma crise de confiança nas instituições e, em particular, na classe política. Precisamos de uma nova forma de pensar a política perante o estigma da corrupção?
Sem dúvida. A experiência que vivemos, de um esforço de austeridade muito intenso sem se ver no horizonte próximo os resultados, muitas vezes pode ter levado muitos de nós a desanimar e a perder a confiança.
Penso que o valor que não podemos perder é a confiança em nós próprios, nos outros e também naqueles que nos governam. É tempo de dizermos que há caminhos novos a percorrer. O esforço tem de ter o seu resultado e o trabalho que se realizou até aqui tem agora de criar patamares novos de desenvolvimento da economia e de justiça social, de equidade entre todos para que as provações e as dificuldades não pesem sobre aqueles que menos têm.
É tempo de dizermos "basta" ao sacrifício e ao sofrimento dos mais pobres e é tempo de dizermos que todos somos necessários para construir um futuro melhor em que as desigualdades sejam diminuídas e em que a justiça seja a resposta. Em que o futuro para os jovens, para os idosos e para as famílias veja uma luz no fundo do túnel e comecemos a percorrer caminhos novos de esperança com confiança uns nos outros.
E a classe política está preparada para esse caminho?
Tem de estar e têm de estar todos. Isto não se faz só com grupos, só com alguns partidos, só com determinadas pessoas. Isto faz-se quando nos respeitarmos a todos, quando nos implicarmos a todos, quando sentirmos que todos somos necessários e todos estamos envolvidos.
Todos somos imprescindíveis na construção de um país melhor. Se o país pensa que pode dispensar seja quem for está a percorrer um caminho errado. E se alguém se pretender marginalizar ou colar-se ao deste esforço colectivo também não está a contribuir par o bem comum. Penso que o bem comum tem de ser uma meta e um objectivo que todos temos de procurar, em conjunto.
Neste diálogo conjunto, nós podemos fazer de Portugal um país melhor, mais justo, mais solidário, onde as novas gerações possam colocar os talentos a render e onde os idosos sintam que contribuíram e que o tempo em que viveram não foi um tempo que agora é ignorado ou desvalorizado.
E precisamos, por exemplo, ao nível político, de novos protagonistas que encarnem esse novo caminho?
Precisamos de uma forma nova de ser líder e de ser protagonista, de ser governante e de ser responsável deste país. Através de uma forma de falar claro, de dizer a verdade, de dar as mãos em conjunto para todos construirmos o bem. E isso pode-se fazer com pessoas que sintam o seu coração disponível e que sintam que, mais do que o interesse próprio, está o interesse de todos e o bem comum a construir.
E que papel está reservado aos cristãos para dar confiança às instituições e à política de que fala?
Eu penso que aos cristãos está reservado desde sempre, desde o tempo de Jesus Cristo, o seu compromisso no meio do mundo. Os cristãos têm de ser trabalhadores incansáveis por um mundo mais juto e por uma sociedade mais fraterna.
Cada um no seu lugar, na sua família, na sua comunidade, na sua profissão, na sua responsabilidade, tem de fazer o melhor, de acordo com os critérios do Evangelho, segundo o paradigma que Jesus nos veio trazer para esta sociedade onde todos queremos ser próximos e irmãos uns dos outros.
Eu creio que o Papa Francisco hoje nos ensina que não podemos viver apenas de teorias, nem apenas de convicções, nem apenas de doutrina. Temos de exercitar na experiência diária da nossa vida aquilo em que acreditamos. Mais acção e sobretudo melhor acção.
Nós sabemos que Deus nos ama. Temos de comunicar isso sem medo, sem receio, sem subterfúgios, com convicção e com alegria. Depois, temos de traduzir em obras aquilo que a fé nos oferece em convicção.
E por isso as nossas obras revelam que a nossa fé está viva e que a nossa fé é actual e tem um contributo a dar ao mundo moderno e que tem uma expressão concreta na nossa família, no nosso bairro, na nossa cidade, na nossa aldeia, na nossa comunidade paroquial, no nosso trabalho, no nosso compromisso político, na nossa intervenção social, no nosso voluntariado generoso, nas iniciativas criativas que os jovens têm. Os jovens vão muitas vezes já muito longe de nós. Precedem-nos no caminho porque eles vêem com uma clareza e uma transparência de espírito que não está presa nem a interesses, nem a conveniências, nem a calculismos. Eles vêem que o caminho do futuro passa por outros critérios que não os calculismos interesseiros. Eles têm a visão da utopia que o Evangelho também nos oferece e que Deus nos revela.
Nesta Quaresma, o Papa convida a Igreja e a sociedade a superar "o mar da indiferença" que ignora o sofrimento de milhões de pessoas em todo o mundo. Este é um dos grandes problemas da actualidade, a forma como arranjamos argumentos para evitar o outro?
Esse é certamente um dos grandes problemas. Na perspectiva do Papa Francisco é por aí que a Igreja tem de ajudar o mundo a repensar-se e a descobrir que neste mar de indiferença em que tanta gente vive, nós temos de ser terra de misericórdia, de bondade e de proximidade.
E a mensagem do Papa é um desafio extraordinário: que todas pessoas sejam reconhecidas, respeitadas e valorizadas na sua dignidade humana, na sua vida, na sua relação com os outros e na construção de um mundo melhor.
E como é que se consegue fazer essa mudança?
Primeiro, através da conversão do coração de cada pessoa. Ninguém nos deve ser insensível, ignorado, esquecido, marginalizado, ninguém deve ser abandonado. Foi isto que Jesus Cristo nos ensinou. E é este caminho que a Igreja tem de percorrer.
Mas existe resistência à mudança...
Muita resistência. Nós vivemos 21 séculos depois da mensagem cristã e vemos que ainda estamos tão longe de construir uma humanidade onde a fraternidade, o reconhecimento, o valor do outro, o assumir do lugar do outro na nossa vida está muito distante. Para vivermos a Páscoa temos de vencer este mar de indiferença e aproximarmo-nos uns dos outros.
Outra ideia forte do Papa Francisco é a do combate à pobreza e desigualdade. No domingo pediu uma Igreja que acolha os marginalizados. Esta insistência do Papa faz crer que é preciso combater a ideia de uma Igreja instalada, acomodada?
É sobretudo preciso reconhecer que a Igreja tem uma missão e um compromisso a desenvolver. E este compromisso é de respeito por todos, mas sobretudo de atenção aos mais pobres. E é para eles que a Igreja mais deve trabalhar: na aproximação aos que estão desempregados, aos jovens que não têm futuro, aos que não têm casa, aos sem-abrigo, aos que são marginalizados, a este mundo imenso de refugiados, e de proscritos dos seus países que morrem, como as crianças na Síria. Tantos milhões de pessoas que vivem vítimas da violência, da guerra.
A Igreja não pode calar a sua voz e não basta falar. É preciso ter gestos concretos em que estes males se vão erradicando e se vão eliminando. Por isso, a Quaresma também de ser, com o esforço do coração e com a intensificação da oração, um espaço de partilha e de solidariedade com aqueles que estão a sofrer mais e a viver momentos de provação. O Papa Francisco não se cansa de nos alertar para esse dever e a Igreja não se pode cansar de realizar essa missão.
E como é que a Igreja em Portugal se está a adaptar a esta mensagem?
A Igreja em Portugal esteve desde sempre, e desde o início da eleição do Papa, muito atenta a acolher a mensagem e a seguir os seus passos. Todo o esforço que as instituições estão a promover no sentido de ajudar os mais necessitados e na denúncia de injustiças... A Igreja tem de estar na primeira linha.
Por vezes é acusada de não o fazer.
É natural que nem tudo o que se tem feito tenha tido a visibilidade e o efeito benéfico que gostaríamos que tivesse, mas o é certo é que nos momentos determinantes, perante situações de injustiça, a Igreja não se tem cansado de as denunciar. E não esgota a sua missão na denúncia, mas sim no anúncio e na construção de meios e de formas em que a igualdade e a justiça sejam respeitadas.
Cumpre esta semana o primeiro ano da sua nomeação como bispo do Porto. 2014 foi um ano atípico?
Foi um ano inesperado. 2014 era um ano em que eu tinha um trajecto definido, depois de um trabalho de acção pastoral programado para terminar no fim de 2013 na diocese que servia [Aveiro]. O Papa Francisco convidou-me a deixar a diocese em que servia como bispo há oito anos e a iniciar, no Porto, um trabalho novo no ministério episcopal. Foi assim um ano inesperado.
E ficou surpreendido com o estado da diocese?
Fiquei surpreendido na medida que tudo era conhecimento novo. 2014 foi para conhecer, primeiramente a própria geografia da diocese, que é muito grande na sua diversidade e ao mesmo tempo muito bela na sua unidade, com um percurso de 15 séculos. Eu vinha de uma diocese que tinha 75 anos de vida. O Porto tem dinâmicas que vêm de longe e dinamismos muito interessantes. É preciso conhecer as pessoas e as comunidades. Para lá do valor da história tem a riqueza de 2.300 milhões de habitantes e 477 paróquias.
Tem paróquias a mais?
Tem as paróquias que a história foi delimitando e definindo. Na estrutura actual, nós temos paróquias que estão unidas umas às outras. Se hoje se fizesse a reorganização administrativa, eclesiástica, as paróquias teriam uma redefinição diferente.
Sente essa necessidade de redefinir?
Sentimos a necessidade de um trabalho inter-paroquial. Mais consistente, mais criativo e com a ousadia de ir vencendo algumas barreiras, mas respeitando também a tradição de muitos séculos.
Mas isso é um problema mais do interior da diocese?
Tem duas facetas. Nas zonas urbanas a densidade populacional é maior; noutras – por exemplo, na zona história do Porto – é menor. E o trabalho inter-paroquial tem todo o sentido numa zona urbana. Nas zonas rurais essa inter-paroquialidade tem outra vertente, mas não deixa de ser também importante até porque há menos população e porque há realidades e iniciativas pastorais que podem ser conjuntas.
Essa é uma das urgências pastorais que nós teremos sempre presente. É o trabalho na comunhão entre as várias paróquias, a valorização das vigararias e o sentido da vida e da unidade diocesana. Eu creio que estes três aspectos são fundamentais para percebermos como queremos trabalhar no todo da geografia diocesana.
Essa é uma das reformas da Igreja do Porto?
É sem dúvida. Vamos por aí. Primeiro para assumirmos todos com alegria a beleza do sentido da vida da diocese, na sua comunhão que vai de Antuã ao Ave e do mar ao Marão. E ao mesmo tempo para valorizarmos o trabalho pastoral das vigararias e da inter-paroquialidade. Sinto que os nossos sacerdotes estão muito disponíveis para este trabalho e para esta forma de renovação pastoral.
Falamos das dificuldades que o país vive. A Igreja do Porto também vive tempos de alguma complexidade ao nível económico-financeiro?
Vive certamente. A diocese tem despesas avultadas. Tem responsabilidades financeiras acumuladas ao longo do tempo, mas também capacidade. Temos que contar muito com a generosidade das paróquias, das comunidades e das pessoas. E isso não me intimida. Eu creio que o que importa é termos no horizonte do nosso trabalho, também aqui no campo financeiro, o conhecimento e uma planificação de uma estratégia estrutural que possa valorizar, primeiro, as receitas que são as normais, mas também o contributo da generosidade das pessoas e das comunidades.
Haverá mudanças a esse nível?
Certamente. Estamos fazer um estudo da realidade para depois propor-nos iniciativas concretas nesse sentido.
Para 2015 há algum lema especial?
O nosso lema pastoral é fazer da "Alegria do Evangelho" a nossa missão. Isto vincula-nos à exortação apostólica do Papa Francisco, sobre a "Alegria do Evangelho", que ele quis que fosse o texto programático do seu ministério como sucessor de Pedro e, ao mesmo tempo, paradigmático da forma como ele vê a Igreja. Esse é o nosso lema. Se conseguirmos motivar as pessoas e mobilizar as comunidades, teremos uma diocese que caminha ao mesmo ritmo, que se renova, que se transforma e que se torna sinal de mudança e de renovação para o mundo.
E o bispo do Porto vai estar pouco tempo no Paço Episcopal?
Sim, para poder ir ao encontro de todas as pessoas e para poder estar mais nas comunidades. Não podemos ser uma Igreja que apenas recebe, que apenas diz "vem". Temos de ser uma Igreja que sabe ir, que sabe estar e que sabe encontrar-se com todos, independentemente da sua origem, do seu credo e estatuto social. Estar, sobretudo, junto daqueles que mais precisam, dos mais pobres e dos que mais sofrem, porque é para eles que o rosto de Deus e o olhar de Deus mais deve estar presente. Aliás, na reflexão que o Papa fez aos novos cardeais no sábado – e também na homilia de domingo – diz-nos muito isso: é necessário que a Igreja saiba ir ao encontro de todos, sem medo de perder algo de si. Em cada uma daqueles que encontra, dizia o Papa Francisco, ganha um irmão.