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Daniela Confalonieri é enfermeira há 25 anos no Hospital San Rafael, em Milão. O departamento onde trabalha, dedicado à cirurgia e reabilitação ortopédica, foi convertido num espaço que também presta apoio aos doentes infetados com a Covid-19. Todos os dias prepara e administra os medicamentos necessários, ajuda os pacientes, na maioria idosos, que têm dificuldades em alimentar-se e, mesmo que o tempo não estique, dá ainda o pouco tempo que tem ao atendimento de chamadas que podem ajudar a desmitificar algumas dúvidas ao mais ligeiro sintoma.
À Renascença conta como é que se aprende a deixar de olhar para o relógio em turnos “massacrantes” e questiona como é possível tranquilizar doentes dentro de um hospital, quando do lado de lá da janela há ainda quem aproveite para passear ou dar uma volta de bicicleta.
Este é o segundo de vários relatos na primeira pessoa de médicos e enfermeiros de toda a Europa, que nesta altura lutam contra um vírus que já matou quase 19 mil pessoas no mundo – perto de sete mil só em Itália, o epicentro da pandemia.
Há tantos, mesmo muitos, trabalhadores, médicos e enfermeiros, que estão em casa doentes, positivos e assintomáticos, daí haver tanta carência. No hospital onde trabalho o pessoal é cada vez menos, porque a cada dia há sempre um que fica doente e fica em casa. A região da Lombardia tomou agora a iniciativa de mandar vir médicos e enfermeiros de todo o mundo, que estão a chegar. Agradeço verdadeiramente.
Apesar de no meu hospital não lidarmos com doentes que precisam de cuidados intensivos, mas igualmente graves, há sempre muito medo e stress. Nunca mostramos esse estado de espírito aos doentes, a nossa função é dar uma palavra de coragem, conforto e tranquilidade. Mas há sempre alguns pacientes idosos, na casa dos 80 e 90 anos, que têm outros problemas cardíacos ou diabetes e que acabam por se agitar mais.
Antes do passado fim de semana [21 e 22 de abril], estávamos a atingir números exorbitantes a nível de contágios e mortes. E convém dizer que, até sexta-feira, não havia o mínimo de precaução: em Milão, ainda havia pessoas que iam dar um passeio pelo parque, andar de bicicleta, correr em grupo. Foi preciso que o governo dissesse “Basta!” para tentar parar os contágios. Obrigaram as pessoas a ficar em casa, suspenderam mais negócios e tudo isto teve a intervenção do exército italiano, que teve 114 homens que vieram de Roma para trabalhar em colaboração com a polícia da Lombardia. Agora sim, as estradas ficaram desertas, apesar do bom tempo. Não se vê ninguém e acredito que as medidas estão a dar frutos, até porque os números têm sofrido uma pequena redução.
Falta de material continua a ser o maior problema
O material é hoje a questão mais grave e importante. Neste momento é escasso, quase inexistente. No hospital onde trabalho, material de proteção individual é racionado ao máximo tendo por base o turno e a exigência. Seguramente também em todos os outros hospitais da Lombardia haverá carência, se não mesmo inexistência. E se não há material, não há assistência, mesmo que estejamos habituados a sacrificar-nos em cada situação.
Apesar dos números que têm sido divulgados, a assistência sanitária italiana no norte é excelente, ao contrário do que acontece no sul do país que tem muitas carências a nível de hospitais, de estruturas, de tudo. Se a pandemia fosse mais no Sul, a situação seria ainda mais exigente, porque não têm infraestruturas como as nossas, especialmente como na Lombardia, onde efetivamente se têm feito milagres, milagres de verdade.
Em relação aos ventiladores pulmonares, que são a coisa mais urgente, nesse capítulo parece que a situação está um pouco mais calma. Têm chegado ventiladores de empresas que produziam outros equipamentos em Itália e que agora os produzem. Além disso, chegaram também ventiladores do estrangeiro e isso para a região da Lombardia é excelente. Mas há outras notícias que têm chegado e que no âmbito da reanimação são importantíssimas. Por exemplo, a Universidade de Bolonha, em parceria com uma empresa local, está a desenvolver um ventilador que permite ventilar duas pessoas em simultâneo e as primeiras experiências foram bem-sucedidas. Alguns desses ventiladores estão destinados à região da Lombardia.
Escolher entre quem vive e quem morre
Tenho acompanhado os relatos de médicos que garantem que, em determinados momentos, precisam de escolher quem vive e quem morre, dada a falta de ventiladores. Mas, para vos dizer a verdade, nunca me deparei com situações como essa. Só posso dizer que no meu hospital os casos de Covid-19 que têm chegado são de pacientes com idades avançadas, mas são tratados exatamente da mesma forma do que os mais novos. Há um total respeito pelo doente, pela sua pessoa e pela sua dignidade, são os princípios que nos regem.
Nasci, moro e trabalho em Milão e desde criança que sempre quis ser enfermeira. E hoje, aos 46 anos, continuo a lutar para que os meus pacientes estejam bem. De resto, o meu dia começa com o relato dos colegas do turno anterior, a chamada passagem de serviço, depois verifico o que cada doente tem de tomar e, por vezes, ainda atendo chamadas de pessoas que ligam para esclarecer algumas dúvidas sobre os sintomas. Às seis da tarde, é servida a refeição com a ementa que os doentes escolhem e ajudo aqueles que têm dificuldade em alimentar-se. À noite, voltam a ser medicados.
Não sabemos quando é que tudo vai melhorar. Prevê-se que o pico da epidemia na Lombardia seja entre 2 a 12 de abril. Mas os virologistas não fazem uma previsão certa, porque há pessoas que até há bem pouco tempo não estavam a respeitar as ordens para permanecerem em casa. Por isso nem eles [virologistas] sabem quando será. O pico pode ser só mais tarde.