Os dias mais recentes da política portuguesa ofereceram um espetáculo paradoxal. No dia 10 de Junho houve a celebração patriótica do Dia de Portugal, este ano dividido entre Braga e Londres. Sempre otimista, com estilo de “coacher” motivacional, o presidente da República passou ao lado da gravidade da situação internacional e das incertezas da situação nacional, preferindo elogiar o “povo português”. Fernão Lopes descobriu-o na “arraia miúda” que apoiou o Mestre de Avis, no século XIV. Marcelo Rebelo de Sousa quis arrancá-lo ao pessimismo reinante, lembrando o Brasil, feito por portugueses em 1822, e Timor-Leste, independentizado com o auxílio português em 2002. Os republicanos de 1910 também achavam o “povo” fantástico, desde que ele apoiasse os governos vanguardista de Afonso Costa e do Partido Democrático. Nesta outra República, e no final da cerimónia em Braga, as forças armadas mostraram o aprumo da nação e os populares saíram de lá com o ego em alta.
Tudo vai bem na pátria? Ou o 10 de Junho terá sido um espetáculo estranhamente distante do estado da Pátria? A segunda hipótese parece-me mais correta. Em 2022, cem anos depois da galvanizante travessia aérea do Atlântico Sul por Gago Coutinho e Sacadura Cabral (não sei se o presidente também referiu esta efeméride histórica), um outro Costa (António, não Afonso) governa o país. O primeiro contacto dos turistas extracomunitários com Portugal são as filas intermináveis e caóticas do controlo de passaportes nos aeroportos nacionais. O SEF, amaldiçoado por sucessivos governantes socialistas e declarado extinguível pelo inenarrável ministro Cabrita, lá sobreviveu e faz o que pode com poucos meios. A maioria das vozes da indústria portuguesa n.º 1 - o turismo - alerta para os danos que um tal caos provoca na imagem do país. Parece que em vão - e são os próprios inspetores do SEF a afirmar que o verão só agora está a começar e que os atrasos subirão como as temperaturas nos próximos meses.
Se o turista adoecer ou, sobretudo, para os muitos portugueses adoentados ou acidentados que tenham de recorrer aos hospitais públicos, o que os espera é também o caos. O encerramento das urgências de obstetrícia na região de Lisboa é somente a ponta do iceberg de um SNS abandonado, descapitalizado, sem renovação de quadros médicos e remendado com tarefeiros, porque não se soube prever, nem prevenir, e porque a ministra da Saúde, que relaxa a ouvir a Internacional e que, para agradar às esquerdas ou à sua obstinação, insiste em desprezar a capacidade prestadora de saúde dos privados, só agora, quase em meados de junho, e perante as evidências, veio, contrita, anunciar um “plano de contingência” para tapar os buracos na rede hospitalar. Enquanto isso, de visita a Londres, António Costa assobiou para o ar: que sim, que há “dificuldades”, mas que o governo está “atento” - imagino que tão atento quanto a ASAE o (não) está ao indecoroso espetáculo da especulação de preços que grassa em tantos e tantos setores da economia portuguesa, com a muito conveniente desculpa da “guerra” e da “inflação”.
Que dizer do extraordinário “povo português” que assiste a tudo e com tudo sofre? A maior parte desse povo deu a maioria absoluta a este governo de contingências; a outra parte não lhe encontra alternativa viável ou segura nas oposições existentes; e a comunicação social ou outros poderes - que deveriam falar pelo povo ou também representá-lo - parecem ter deixado adormecer a sua energia crítica e escrutinadora. Os tempos não estão fáceis para o “povo português”; mas parecem continuar tranquilos para o aparentemente intocável governo de António Costa.