A consagração da Rússia e da Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria, que acontece esta sexta-feira em Fátima e no Vaticano, é um “grande dom” para “levar esperança aos corações” em tempo de guerra no Leste da Europa, afirma o arcebispo de Moscovo, D. Paolo Pezzi.
Em entrevista exclusiva à Renascença, D. Paolo Pezzi manifesta preocupação com as comunidades católicas na Rússia e o risco de as ligações com familiares e amigos da Ucrânia se transformarem em desconfiança e ódio.
“Esta consagração está em relação com o que a Virgem disse em Fátima”, afirma o arcebispo de Moscovo. “Estou muito grato ao povo português porque não guardou para si, nem se encheu de ciúmes com Fátima, mas abriu-a a todos e ao mundo inteiro”, sublinha.
A cerimónia de consagração da Rússia e da Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria - uma iniciativa do Papa Francisco - realiza-se esta sexta-feira, em Fátima e no Vaticano, a partir das 16h00.
Como está a viver estes tempos difíceis, aí na Rússia?
Antes demais, peço desculpa porque não falo Português. Como estamos a viver este momento? Penso que como todo o mundo. Talvez aqui seja um pouco diferente de outros sítios porque sentimo-nos diretamente envolvidos, sobretudo, devido a tantos afetos e tantas pessoas das nossas comunidades católicas aqui na Rússia que têm ligações com parentes, pais, amigos na Ucrânia.
Muitos mantêm viva as raízes da própria fé, como é justo, e, portanto, esta situação criou tensões, incompreensões e diria, até, uma certa desconfiança nos relacionamentos. É neste sentido que procuramos dar a nossa ajuda, mais espiritual do que psicológica ou material, ainda que esta também exista. Mas, sobretudo, uma ajuda espiritual que ajude a vencer esta distância e o risco de começarem a encarar-se como inimigos.
E, neste contexto, qual é o significado da decisão do Papa em consagrar a Rússia e a Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria?
Vivemos isto como um grande dom. Um dom que nos permite regressar às raízes, não só da nossa fé, mas também da nossa proposta cristã. Cristo entrou no mundo através do coração Imaculado de Maria, através dele Deus fez-se homem. E agora, num certo sentido, a Virgem pede-nos para nos dirigirmos ao seu Imaculado Coração e podermos reafirmar que somos seus, de Cristo.
Por isso, esta consagração também tem o significado de nos perguntar se Cristo, realmente, é capaz de superar o ódio e a violência. Se, por outras palavras, Cristo é mais forte do que as armas, em primeiro lugar, no nosso coração. É outra razão pela qual esperamos este ato de consagração: como forma de renovar o nosso “sim” a favor de Cristo, que será também um “sim” a tudo o que pudermos fazer para levar esperança aos corações.
O facto desta consagração ser feita pelo Papa, em união com todos os bispos do mundo, tem mais força?
Santo Agostinho, ao comentar um salmo que diz “de toda a terra, grito ao Senhor”, afirma com espanto que este grito não é só de um homem, é o grito de todo um povo que grita a Deus, em uníssono. Penso que o significado de fazermos a consagração todos juntos, tendencialmente à mesma hora, em todas as partes do mundo, tem o significado de participar numa comunhão que é mundial.
Gostaria aqui de retomar a encíclica “Fratelli Tutti”, onde o Papa diz que há atos e há momentos em que deixa de haver divisão entre fiéis e não fiéis, mas onde todos somos chamados a reconhecer o único Pai e, assim, a encararmo-nos como irmãos. Parece-me que é este o valor e a força de um ato de consagração que envolve todo o mundo e todos os homens de boa vontade.
É possível pensar que esta iniciativa surge porque o diálogo e as negociações para a paz são tão difíceis, que é preciso recorrer ao Céu, como último recurso?
Não creio. Penso que recorrer ao Céu é uma necessidade que vem sempre antes, que se antecipa a qualquer ação, incluindo qualquer negociação. O Papa Francisco, durante a sua viagem ao Iraque, usou esta expressão: quem tem a coragem de olhar para as estrelas, quem tem a coragem de reconhecer Deus e de lhe dar um novo espaço, introduz uma nova lógica.
Como vê a decisão do Santo Padre enviar a Fátima o cardeal Krajevski que, há poucos dias, esteve na Ucrânia? Poderia não ter vindo ou celebrar noutro local Porquê esta presença física em Fátima?
Penso que é importante. As nossas intenções do coração, interiores, também precisam de sinais exteriores, visíveis. Para mim, este é um destes sinais. Ou seja, serve para indicar com clareza que esta consagração ao coração Imaculado de Maria está em relação com o que a Virgem disse em Fátima. Não esqueçamos aquela belíssima e tão humilde expressão “o meu Imaculado coração triunfará”.
É certo que agora, a consagração poderia ser feita pelo bispo local, com ele a presidir à celebração, mas o facto de ele enviar um delegado, significa que o Papa está a dizer que, entre todos os sítios possíveis, quer estar aqui, de modo particular, onde a Virgem disse isto.
E, em segundo lugar, porque o cardeal Konrad Karjewski, enquanto esmoler, traz consigo para consagração, diretamente no local onde a Virgem falou, os mais pobres, os mais marginalizados e abandonados, os que se viram obrigados a fugir desta situação. Não esqueçamos que, em Fátima, Nossa Senhora escolheu dirigir-se a três Pastorinhos.
A mensagem de Fátima é inseparável da Rússia. Nossa Senhora falou dos erros dos homens e da Rússia e também da sua conversão. Todos conhecemos os dolorosos acontecimentos do regime soviético, mas a atualidade deste apelo mantém-se. Não teme que esta consagração poderá vir a criar mais tensões com os ortodoxos?
Não, não penso. De todo, nem nunca me lembrei disso. Parece-me ter sido sempre claro, pelo menos para os que têm um coração simples e razoável, que Nossa Senhora não vem pedir aos cristãos que todos se tornem, imediatamente, católicos. Nossa Senhora pede a conversão a Cristo. É por isso que fala do seu próprio coração, do coração da Virgem que triunfará. Porque o coração Imaculado da Virgem remete para a encarnação, remete para os diálogos entre a Mãe e o Filho, remete para o milagre de Caná, para Nossa Senhora junto à cruz, para Nossa Senhora no sepulcro.
Ou seja, em tudo, Nossa Senhora dirige-se a Cristo: “Fazei tudo o que Ele vos disser”. Parece-me que isto é tranquilamente evidente para todos, que somos chamados a uma conversão a Cristo. Parece-me que a atualidade deste apelo já nos foi dada pelo Papa Bento XVI, quando disse que nós tendemos realmente a esquecer este apelo à conversão, sobretudo, quando as coisas más passaram e nos parece que já estamos um pouco melhor. Em vez disso, as convulsões deste tempo que não desejaríamos exigem de nós esta necessária conversão. Por isso, repito: esta é uma conversão a Cristo.
Onde vai estar nesse momento. Com a sua comunidade?
Sim, vou estar na catedral, em Moscovo, e pedi a todas as paróquias que realizem este gesto, à mesma hora. Ou seja, às 18h00 (hora de Moscovo), celebro a santa missa da anunciação e depois, às 19h00, ligamo-nos a Roma para participar na celebração penitencial comunitária que encerrará com o ato de consagração.
Quer deixar uma última palavra ou mensagem ao povo português?
Sim, com todo o gosto. Quero deixar-vos uma mensagem de gratidão. Estou muito grato ao povo português porque não guardou para si, nem se encheu de ciúmes com Fátima, mas abriu-a a todos e ao mundo inteiro. É sempre esta a sensação que tenho, nas diversas ocasiões em que fui a Fátima. Por isso, muito obrigado.