A eutanásia viola a Constituição da República? É ético o Parlamento legalizar ou deve haver um referendo? Existem direitos absolutos? É uma questão de liberdade individual ou a sociedade deve ter uma palavra a dizer? E os cuidados paliativos e a hipótese de “rampas deslizantes”? Os constitucionalistas Jorge Reis Novais e Tiago Duarte debateram estas e outras questões na Renascença. Conheça os argumentos opostos destes especialistas.
O artigo 24.º da Constituição da República Portuguesa, referente ao direito à vida, diz expressamente no ponto 1 que “a vida humana é inviolável”. No ponto 2 acrescenta que “em caso algum haverá pena de morte”
Na leitura de Jorge Reis Novais, este artigo não inviabiliza as propostas de despenalização da eutanásia que vão ser discutidas no Parlamento, no próximo dia 20.
“O facto de a Constituição dizer que a vida é inviolável significa que dá muita relevância a este direito fundamental, dá muita relevância à vida humana, mas não significa que este direito não possa ser limitado”, sobretudo, porque no caso da eutanásia, “a limitação ao direito à vida é consentida e desejada pelo próprio, que pede ajuda para poder levar a cabo”, defende Jorge Reis Novais.
O constitucionalista argumenta que, em alguns casos, a autonomia individual tem primazia sobre o princípio de que a vida humana é inviolável.
“Por exemplo, no caso da testemunha de Jeová, se os pais não quiserem que uma criança leve uma transfusão de sangue, em nome da autonomia e liberdade de consciência, aí já seria o direito à vida a prevalecer. Neste caso da eutanásia, há esse papel relevantíssimo que é a pessoa em causa está em situação de grande sofrimento, terminal, irrecuperável e é ela própria que não tem condições físicas para levar a cabo a sua decisão, o que a generalidade das pessoas tem, pede ajuda para fazer. A meu ver, seria uma violência extrema, havendo possibilidades de a ajudar, obrigá-la a permanecer viva, em grande sofrimento, sem possibilidades de recuperação”, afirma Jorge Reis Novais.
“Vida humana é inviolável e não negocia com outros direitos”
Em sentido contrário, Tiago Duarte, que também é membro do Conselho de Ética para as Ciências da Vida, defende que legalizar a eutanásia choca de frente com a Constituição da República.
“Não podemos uma visão tão relativista sobre a Constituição. O mesmo artigo que diz que a vida humana é inviolável, tem depois um artigo 2 que diz: em caso algum haverá pena de morte. E nós não podemos dizer: em alguns casos se possa abrir uma exceção. Quer dizer que não haverá nunca pena de morte. Quando se diz que a vida humana é inviolável, daí se retira que não é possível o Estado atuar no sentido de violar essa mesma vida humana ou contribuir para a violação dessa vida humana. Isso não vem ao arrepio da nossa Constituição, vem no seguimento da nossa Constituição, que é humanista e que põe à cabeça esta ideia de que a vida humana é inviolável e que não entra em negociação com outros direitos que possam estar em causa”, defende Tiago Duarte.
Jorge Reis Novais responde que “não há direitos absolutos, em nenhum caso”. Se assim fosse, argumenta, “o artigo 24 não precisaria do número 2 a dizer: ‘em caso algum haverá pena de morte’”.
“Quando se utilizam essas fórmulas na Constituição temos de ter a consciência de que não há direitos absolutos, em nenhum caso. Incluindo o direito à vida, há inúmeras circunstâncias em que pode ser limitado. Já dei o exemplo da testemunha de Jeová, do outro de uma pessoa que não quer que se inicie o suporte vital para lhe procurar salvar a vida ou que se interrompa o suporte vital que lhe tinha sido atribuído”, sustenta.
“Para o Professor Tiago Duarte, a vida humana é um conceito absoluto, que em circunstância alguma pode ser limitado mesmo que nós queiramos. O Professor Tiago Duarte tem todo o direito de levar a sua vida de acordo com esses princípios, como todas as pessoas que têm essa filosofia. Agora, não podem é obrigar pessoas que não têm os meus valores a viver e a morrer de acordo com as suas imposições e mais: se não o fizerem serem condenados com recurso ao Direito Penal. O Estado de Direito não pode servir para nós impormos as nossas convicções religiosas às outras pessoas”, advoga Jorge Reis Novais.
“Estamos a falar de eutanásia para pessoas que poderão viver muitos anos”
Os diferentes projetos que vão ser discutidos no Parlamento, à exceção do Bloco de Esquerda, impõem que o pedido de eutanásia só possa ser validado se o doente estiver consciente no momento do pedido e quando a eutanásia for aplicada.
Para Tiago Duarte, “nada torna aceitável que o Estado legalize a eutanásia”, sendo que os projetos que estão em cima da mesa “não falam em estado terminal”, falam apenas “em doenças incuráveis”.
“Já não estamos naquela discussão inicial em que se falava da eutanásia como uma antecipação da morte que iria acontecer no minuto, na hora ou no dia seguinte. Estamos a falar de eutanásia para pessoas que, se não morrerem por causa da eutanásia, poderão viver muitos anos. Não estamos a falar de uma antecipação curta da vida”, adverte.
Em segundo lugar, adianta Tiago Duarte, a eutanásia não é uma questão de liberdade individual, porque será sempre uma terceira pessoa, o médico, a decidir.
“Também não estamos a falar da liberdade de cada um, porque, nos projetos que estão em cima da mesa, não se dá a liberdade às pessoas de terem a eutanásia, quem decidirá será um médico. O médico é que decidirá se aquela pessoa está em sofrimento que justifique a eutanásia ou não. Temos uma situação paradoxal de se dar a ideia de que há um direito que a pessoa tem, que exerce a sua liberdade e autonomia para poder pedir a eutanásia, mas depois a decisão fica nas mãos de um terceiro, o que pode tornar a situação mais dolorosa para a pessoa que quer a eutanásia e pode não lhe ser dada, por decisão de um terceiro que vai medir o que é sofrimento aceitável ou não aceitável.”
Eutanásia e cuidados paliativos
Ao aprovar a eutanásia sem garantir cuidados continuados e paliativos, os deputados podem estar também a ferir a Constituição?
Jorge Reis Novais defende que a aposta nos cuidados paliativos não é incompatível com a legalização da eutanásia.
Em caso de eutanásia, devia ser obrigatório que ficasse registado que “que tinham sido oferecidos cuidados paliativos à pessoa e todas as hipóteses de não recorrer à via extrema”, sustenta o constitucionalista.
“As coisas não são incompatíveis, mas se mesmo oferecendo essas possibilidades, se uma pessoa não quiser, acho insustentável e de uma violência extrema queremos impor a uma pessoa que não quer viver à força, em sofrimento. Há pessoas que, também por convicção religiosa, consideram que o sofrimento é bem-vindo, uma benesse, uma dádiva. Eu não considero e vão-me impor como é que eu vou viver”, afirma Jorge Reis Novais.
Os cuidados paliativos são importantes, mas o que se passa, atualmente, é que “as pessoas mais débeis, mais humildes, mais sem conhecimento são obrigadas a levar o sofrimento até ao fim, em condições inadmissíveis, porque não têm possibilidade, não conhecem as pessoas, não se movimentam juntos dos médicos, não sabem a quem pedir ajuda”, sustenta.
Tiago Duarte não tem dúvidas de que existe “um quadro de desigualdade” se a eutanásia fosse aprovada sem garantir cuidados continuados e paliativos para todos.
“Claro que existe um quadro de desigualdade e há um quadro de prioridades. Todas as pessoas percebem que a prioridade é acudir às pessoas que estão em desespero, que estão doentes, a quem precisa de apoio seja para doenças físicas ou psíquicas. Mesmo se houvesse uma rede de cuidados paliativos no país inteiro, ainda assim, acho que não devia haver a possibilidade o Estado incorporar no Serviço Nacional de Saúde um serviço de matar pessoas, ainda que a pedido delas próprias”, defende o constitucionalista pró-vida.
Tiago Duarte rejeita que a oposição à eutanásia seja uma questão meramente religiosa e considera que Jorge Reis Novais manifesta um “liberalismo extremo e um liberalismo individualista que o povo resume no ‘cada um sabe de si’”, mas a Constituição serve para “ultrapassar essa ideia”, aplica-se a todos, “reflete aquilo que somos como conjunto e povo”.
“Para mim, uma pessoa morrer não é uma coisa só para ela. Se o Estado mata uma pessoa, mesmo que não me mate a mim, isso incomoda-me, isso interpela-me. Não é uma questão religiosa, é uma questão de sociedade e de civilização.”
Tiago Duarte recorda que, há dois anos, o Conselho de Ética para as Ciências da Vida deu um parecer considerando que não era ético a legalização da eutanásia. “Em 20 conselheiros, 19 entenderam que não era ético e apenas um votou contra, e o Conselho não tem nada de religião, é plural. Querer transferir um tema constitucional e ético para a questão religiosa, é estar a afunilar um tema”, sublinha.
Referendo: sim ou não?
Jorge Reis Novais afirma que o debate sobre a eutanásia já dura há vários anos e que está na altura de avançar, apesar de admitir que “a questão é tão complexa que a discussão nunca está feita e por isso é que as leis não são definitivas e podem ser alteradas”.
O constitucionalista não pode dizer que os portugueses estejam todos informados e esclarecidos sobre a questão e, por isso, considera que um referendo à eutanásia seria “totalmente inadmissível”.
“Quando se pede uma resposta de sim ou não para questões desta complexidade o resultado é sempre distorcido. As pessoas teriam de simplificar as coisas a um ponto tal que não perceberiam nunca a complexidade da questão”, sustenta Jorge Reis Novais.
Sobre o argumento da “rampa deslizante” para a eutanásia, como aconteceu noutros países, o constitucionalista considera que é utilizado “quando não se tem mais nada para dizer”. Diz que “assistimos a isso na discussão do aborto”, que haveria uma “avalanche de abortos” que não se confirmou, defende.
Tiago Duarte afirma que não existiu debate na sociedade portuguesa e “a generalidade das pessoas não está ciente do que está em causa”.
“A maior parte das pessoas diz que não quer ficar ligada a uma máquina ou prefere que os meios de suporte de vida sejam desligados se ficar em situação vegetal. Isso não é eutanásia, isso já é permitido hoje em dia. Os médicos têm o dever de não prolongar artificialmente a vida, as pessoas têm o direito de declarar que não querem ser sujeitos a determinados meios de prolongamento artificial da vida. Na eutanásia não se morre de nenhuma doença, morre-se de eutanásia. E esse debate ainda está por fazer”, sustenta o constitucionalista.
Tiago Duarte não conhece nenhuma instituição favorável à eutanásia e, sobre o referendo, não tem dúvidas que a eutanásia deve ser matéria de uma consulta popular.
“Se há tema que é passível de ser esclarecido e debatido é a eutanásia. Aí é que faz sentido um homem um voto, uma mulher um voto. Se é para discutir e votar este tema, então que se abra o debate ao país inteiro. Antes da aprovação no Parlamento? Quando mais cedo se fizer este debate melhor. Este tema foi artificialmente trazido para a sociedade portuguesa. O grande tema é saber o que fazer aos idosos e doentes que carecem de apoio e tratamento. Alguém acredita que uma pessoa em sofrimento é livre e esclarecida para decidir sobre a eutanásia? Ele quer continuar a ser ajudado.”
Tiago Duarte recorda um excerto da letra de uma música de Pedro Abrunhosa: “não desistas de mim” e considera que essa deve ser a questão na sociedade portuguesa.
“Esse é que é o grande tema: não desistir das pessoas, não vamos entrar numa lógica individualista de o que o meu vizinho faz não me interessa. Não desistas de mim é o que as pessoas todas vão pedir quando estão numa situação de sofrimento”, conclui Tiago Duarte.