A realização da Festa do Avante tem sido notícia nos media internacionais. Espantam-se por Portugal permitir o que não se autoriza em quase mais sítio nenhum. E já perceberam (os meios de comunicação estrangeiros) que a autorização para a Festa do Avante decorre de um objetivo político concreto: seduzir o PC para a negociação do orçamento de 2021.
Por cá, não nos tinha escapado o alcance político da decisão. Mas não nos espantámos. E é fácil saber porquê.
Desde o início da pandemia, alguns dirigentes políticos fizeram o favor de explicar ao país que o mundo da política vive para além das regras impostas ao comum dos mortais.
À política autoriza-se o que à sociedade civil se recusa. As iniciativas políticas são mais importantes que funerais, casamentos e visitas a idosos. Esta doença toca a tudo e a todos, mas em Portugal a pandemia rende-se à passagem daquilo que for classificado como tendo natureza política.
Pelo meio, vai-se culpando a Constituição. Os portugueses que compreendam: o Governo, coitado, está de mãos e pés atados para conter atividades que manifestamente põem em causa a saúde pública, se as mesmas tiverem origem política ou partidária. As celebrações do 25 de Abril e do 1.º de Maio, as manifestações do Chega e do movimento antirracista, e agora a Festa do Avante, teriam tido outro rumo, não fora esta interpretação constitucional.
Restaria o bom senso, pelos vistos inexistente, da entidade promotora. Estamos perante um caso de mera afirmação política? Trata-se de um problema financeiro do partido, à semelhança de tantas empresas em todo o mundo, que não quer dispensar a receita da Festa do Avante, num ano economicamente negativo?
Seja qual for a razão, a imposição da Festa do Avante é algo que não seria consentido a qualquer empresa ou a qualquer vulgar cidadão.
A dicotomia política vs. sociedade é um erro que nos pode custar caro. A sociedade que não se reconhece na atuação dos políticos tende a recusá-los: tanto aos seus dirigentes como, infelizmente, à própria política.
Para os extremos é bom. Para o populismo é ótimo.
Para quem prefere soluções ao centro é mau. Para os políticos moderados é péssimo.
De facto, há uma pandemia em curso. E aos dirigentes em geral, e ao Governo em particular, compete unir os portugueses à volta do necessário e evitar o desgaste adicional, provocado por decisões incompreensíveis e contraditórias com o bem comum.
Vivemos um tempo de equilíbrios frágeis e precários. Basta ver como algum agravamento dos números foi pretexto para colocar Portugal no sítio em que não queremos estar: nas listas de exclusão de viagens de países que canalizam para Portugal milhões de turistas todos os anos.
Saímos das listas negras, mas corremos o risco de lá voltar. E se tal suceder, isso vai custar mais desemprego e mais sofrimento, agravando condições de subsistência de muitas pessoas e de muitas famílias portuguesas, direta ou indiretamente ligadas ao turismo.
Por outro lado, sabe-se que o outono é incerto e potencialmente perigoso. A ministra da Saúde diz que o mais difícil está para vir. E o Conselho de Ministros anunciou em final de agosto o regresso do estado de contingência para 15 de setembro, isto é, escassos dias depois do termo da Festa do Avante.
Na altura, a ministra Mariana Vieira da Silva exprimiu também preocupações com o início do ano escolar e com o regresso de muita gente aos locais de trabalho. E prometeu medidas a anunciar brevemente.
Seria bom, por exemplo, que o Governo acautelasse a situação nos transportes públicos, numa ação concertada com empresas e sindicatos, por exemplo, quanto à diferenciação de horários de trabalho.
Caso contrário, é de temer que o ministro Pedro Nuno Santos volte à carga com a sua teoria de que nos transportes públicos (utilizados atualmente por pessoas economicamente mais frágeis que não dispondo de meios alternativos se veem obrigadas a viajar por vezes como sardinha em lata) nem lotação máxima deveria haver.
O ministro Pedro Nuno Santos é tido como representante da ala esquerda do PS e disse o que disse. Dizendo-o, parecia um liberal. E se o fosse, o que não diriam dele, e nessa altura com razão, muitos dos que agora o ouviram calados, incluindo o próprio primeiro-ministro?
Nos transportes, nos locais de trabalho, nas escolas, nos hospitais, nos lares, nos espaços públicos o foco é o mesmo: salvar pessoas, evitar que a pandemia cresça como bola de neve, e garantir o funcionamento da saúde, da economia e do emprego, em moldes razoavelmente aceitáveis.
No meio de todos os cuidados, prevenções e avisos quanto ao futuro próximo, uma nota dissonante: a inevitabilidade da Festa do Avante. A subserviência governamental é óbvia. Como óbvia é a cegueira do PCP, ao impor ao país o que a mais ninguém se consente.
Já houve tempos em que o PC procurou impor na rua o que as urnas não lhe consentiam. Assim se vê a força do PC, gritava-se nas suas manifestações.
Houve coisas que mudaram, mas este episódio volta a demonstrar que aos comunistas se consente uma força e um poder especiais que não correspondem sequer à sua implantação eleitoral.
Por causa da Festa do Avante há comerciantes da zona, mais de 50, a fechar portas durante o evento, para evitar contactos e contágios. Mas nem isso faz recuar os promotores da festa. É o braço de ferro mais absurdo de sempre: um partido num lado, a saúde de um país no outro.
De resto, faça-se-lhe justiça, Jerónimo Sousa nunca duvidou. Ao longo do tempo lá foi deixando entender que fosse como fosse, a Festa do Avante seria para manter, elogiando a criatividade dos comunistas. E até aproveitou para desvalorizar a natureza musical da festa, como se os concertos não fossem o chamariz, a coberto do qual o resto acontece.
Na verdade, para o caso, tanto faz. O que importa é evitar a concentração de milhares de pessoas, num evento cuja natureza eminentemente festiva, potencia o contacto humano. Tudo isso é bom e será ainda melhor, quando se vencer esta crise.
A Festa do Avante, como muitas outras festas da mais diversa natureza, são todas legítimas e muito importantes para milhares de pessoas. Mas no contexto atual, autorizar festas como a do Avante – tenham elas a cor partidária que tiverem – é, no mínimo, irresponsável.
Se por acaso voltássemos a um confinamento social e economicamente insustentável semelhante ao da primavera, de que teriam valido os sacrifícios de tantas pessoas, empresas, médicos e enfermeiros?
Vale a pena autorizar a Festa do Avante e arriscar a saúde pública na esperança de uma negociação orçamental bem-sucedida?
Entre defender a saúde dos portugueses ou satisfazer o Partido Comunista Português, o Governo escolheu. Mas escolheu mal.