Vamos desacertar as contas. Costa vai ter de perceber que já estamos todos fartos de tanto rigor, tanta poupança do Estado e tanta excelência na execução orçamental.
Todos sabemos que a realidade não é tão boa como a pintam e que o que existe é sobretudo uma engenharia financeira melhor urdida e sustentada do que as anteriores. Mas os factos provam que há, desta vez, poupança pública a mais e despesa a menos. Com isso todos, direta ou indiretamente, sofremos as consequências, quanto mais não seja a nível do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Isto para não falar no resto: educação, habitação, segurança.
Esta semana, o CDS esgrimiu um número assustador: o tempo de espera da consulta de cardiologia no Hospital de Penafiel era de quase quatro anos. Costa ripostou com acusações de exagero: seria menos de metade. Ao final da tarde o Ministério da Saúde esclarecia: pouco ultrapassava os dois anos. Costa tinha confundido dias de espera e número de doentes da lista e esses é que se aproximavam dos 600.
No dia seguinte, a ministra da Saúde, Marta Temido, pediu desculpa por ter induzido o primeiro-ministro em erro. Mas não se deu conta da enormidade do número em si. Uma coisa é certa: para muitos a consulta, sobretudo sendo a primeira em cardiologia, já não será útil. A passagem do tempo tratará daqueles que o SNS deixar por tratar.
Costa cometeu, aliás, um segundo lapso no primeiro dia do debate. Afirmou que, no próximo Orçamento, haveria algumas boas notícias na Saúde, a começar pela “redução sustentada do nível de suborçamentação”. É caso para dizer que era uma boa notícia “com o rabo da má de fora”. Afinal, a suborçamentação, uma “doença crónica do sistema”, não será eliminada, mas será para continuar em menor grau. Neste momento, contas feitas, a dívida em atraso das entidades públicas cai a pique mas ainda anda próxima dos 650 milhões de euros.
A execução orçamental de outubro mostra que, dos mais de mil milhões de despesa cativada este ano, só 20% foram gastos até outubro, verificando-se ainda um “superavit”, ao fim de dez meses, ainda de mais de 900 milhões. As poupanças são tantas que, dos 9,2 mil milhões previstos no OE para o SNS (e apesar do reforço de transferências em 340 milhões face a 2018) falta ainda gastar 1,7 mil milhões da verba inicial.
Não é demais para o que falta pagar, mas se há défice justificável é com certeza este. Quanto ao suposto “superavit” esperado já este ano, é melhor não comemorar. Falta contabilizar os aumentos de capital expectáveis para a banca. Só no Novo Banco, dos mais de dois mil milhões que o Estado ainda poderá vir a transferir, o mais provável é que tenha de o fazer já em 2019, ou seja, sem esperar pelo fim do prazo possível para a injeção de capital.
Mas há mais uma série de indicadores que nos deixam preocupados em matéria de gestão do SNS. A única coisa que se pode retirar de dois dias de debate parlamentar é, finalmente, o reconhecimento do caos por parte da própria ministra.
Limitemo-nos, por isso, à Saúde e aos indicadores revelados nos últimos oito dias:
1. Como já aqui tínhamos referido na semana passada, os dados das mortes perinatais (das 28 às 40 semanas e nos primeiros sete dias de vida) revelados pelo INE mostram que entre 2017 e 2018, a mortalidade disparou em termos absolutos para 370 (o número mais alto dos últimos seis anos), o que se traduz no agravamento de uma taxa de 3,3 para 4,2 por cada mil. Com uma agravante: no Alentejo a taxa superou os 6 e nos Açores os 8. Em termos globais, o aumento foi de 25%. Em declarações à Renascença, o bastonário dos médicos disse que “as gravidezes tardias trazem mais complicações e riscos de insucesso”, mas nas duas regiões citadas a idade média da gravidez é inferior à média nacional em um ano. Dá que pensar.
2. Passemos à mortalidade das mulheres “por complicações da gravidez, parto e paupério”. As mortes, que tinham estabilizado entre 5 e 6 nos três anos anteriores, aumentaram 50% em 2017 e outros 90% em 2018 (atingindo 17 mulheres). O diretor do colégio de obstetrícia, Luís Graça, classificou o número como uma “brutalidade sem sentido”. O "Público" adiantou que só três das mortes atingiram mulheres com mais de 40 anos, enquanto cinco tinham menos de 30. É difícil acreditar que as greves repetidas, a instabilidade das equipas e a escassez de meios humanos e materiais no setor não tenham nada a ver com esta “barbaridade”.
3. Também ficámos a saber que, em todo o país, 43% do recurso às urgências se deveu a causas sem gravidade que justificassem as idas ao hospital. Na área metropolitana de Lisboa, as “falsas urgências” foram mais de 50% dos atendimentos. Não somos loucos. Algo de muito grave se passa para que, ao primeiro sintoma de mal estar, sejamos atirados de imediato para o fim da linha.
4. Não precisamos de recordar as notícias dos périplos de doentes transferidos de hospital para hospital, por encerramentos temporários de uns, falta de especialidades básicas noutros, ausências de comunicação entre os diversos agentes, resultantes num tempo de transportes claramente exagerado. Basta ter lido os jornais.
5. Na execução orçamental vemos que a compra de bens e serviços do SNS (Estado e Segurança Social) teve uma redução de gastos acumulados até outubro face ao mesmo mês do ano passado, de 134 milhões de euros num total de 4,4 mil milhões. Não sabemos se devemos ficar felizes ou preocupados.
6. Por último, na pior das doenças que afeta o país verifica-se uma regressão demasiado lenta: a taxa de população que vive em risco de pobreza (abaixo da linha fixada agora em 501 euros mês “per capita”) reduziu-se apenas uma décima, para 17,2%. Sem as transferências do Estado a título de subsídios de doença, incapacidade, família, desemprego e inclusão, a taxa subia para 23%. Nos Açores os 17 transformam-se em 32% e na Madeira em 27%. Entre quem trabalha, o risco de pobreza agravou-se para 11% e entre desempregados aumentou para mais de 47% o que mostra bem até que ponto quem ainda está no desemprego cada vez tem menores hipóteses de reingressar no mercado. Também as famílias monoparentais com crianças tem um risco de pobreza de mais de 34% e nas famílias numerosas uma em cada três arrisca-se a passar a “pobre”.
7. Se ao critério estritamente monetário somarmos a privação material severa que passa por não cumprir alguns critérios de qualidade de vida (como poder ter a casa suficientemente aquecida, poder gozar uma semana de férias e outros), e o facto de muitos trabalharem muito menos horas do que podiam e desejariam, então o risco de pobreza e exclusão social passa a atingir mais de um quinto da população, ou seja, mais de 2,2 milhões de portugueses.
Conclusão: Não é só o Serviço Nacional de Saúde em evidente risco de colapso que está a implodir num país gravemente doente. No repensar de todo este sistema de cuidados de saúde, temos também de integrar o combate à grave pandemia da pobreza, porque ela também está na base de uma série de outras doenças com a sintomatologia mais diversa. E se para combater esta e outras pandemias o “falso” excedente tiver de se assumir défice? Seja. Não será dai que virá nenhum mal ao mundo.