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O encenador Jorge Silva Melo questiona-se: “se fosse agora, seria capaz de fazer o que, com o Luís Miguel Cintra, fiz quando tinha 25 anos, que foi o Teatro da Cornucópia? Não era com certeza”. O desabafo, em declaração à Renascença, revela o desânimo e a angústia que se vive no setor cultural fruto da paragem na atividade devido à pandemia de Covid-19.
A situação critica leva esta quinta-feira à rua os profissionais das artes, espetáculo e audiovisual. A manifestação nacional acontece pelas 18h00, no Rossio em Lisboa, na Avenida dos Aliados, no Porto, e na escadaria do Teatro Lethes, em Faro.
Durante duas horas, de máscaras na cara, gel desinfetante nas mãos, o setor da cultura vai tomar os espaços, seguindo a regra do distanciamento social. Rui Galveias, representante do CENA – STE, o Sindicato de Trabalhadores de Espetáculos, Audiovisual e Músicos, refere em entrevista à Renascença que quer que este protesto “seja um exemplo”.
“Faro, Lisboa e Porto foram os espaços onde conseguimos criar condições em segurança para nos manifestarmos. Precisávamos que fosse com cuidado”, diz Rui Galveias. O responsável do sindicato explica que a manifestação “será na lógica de um ‘voo de avião’ de duas horas”.
“Vamos pedir às pessoas que cheguem ao Rossio, aos Aliados e à frente do Teatro Lethes e que ocupem os lugares disponíveis, e mantenham o distanciamento de dois metros entre elas. Usem máscara, levem gel. Vamos pedir, no final, que desmobilizem rapidamente e que se dirijam às várias saídas, sem criar ajuntamentos.”
Jorge Silva Melo junta a sua voz ao protesto
Solidário com esta manifestação está Jorge Silva Melo. O encenador de 71 anos diz que vive dias de “ansiedade permanente, a querer saber notícias”. Dorme mal, não consegue concentrar-se para escrever e ler e mostra-se angustiado com o atual momento do setor cultural.
Questionado sobre a manifestação desta quinta-feira, Silva Melo aponta “dois assuntos graves”. Por um lado, diz o diretor artístico dos Artistas Unidos, há a questão laboral que deve ser tratada com o Ministério do Trabalho.
Silva Melo fala na “precariedade da maior parte das pessoas que trabalham em espetáculos, seja de música, teatro, dança. A situação laboral desta gente não pode continuar. Tem a ver com a contratação e aquela coisa bizarra dos recibos verdes”, aponta o encenador.
Por outro lado, há um “assunto que tem a ver com o Ministério da Cultura”, diz Silva Melo, que deixa várias perguntas: “para onde é que vamos? Para que é que precisam de nós? Somos artistas, ainda somos precisos?”
Silva Melo, que teme o fim do “teatro fora das grandes salas municipais e nacionais” depois desta pandemia, lança outra questão: “eu e os meus amigos podemos criar um grupo?” A esta pergunta Silva Melo responde recordando o momento em que criou, com o ator Luís Miguel Cintra, o Teatro da Cornucópia e reconhece que neste contexto não seria capaz de voltar a fazê-lo.
O encenador que fala em “situação de descalabro”, aponta que “nenhum destes assuntos está a ter resposta”.
Quem também quer respostas é o CENA – STE. Rui Galveias afirma: “queremos que a ministra da Cultura e o Governo ouçam várias coisas. Queremos que haja uma alteração de fundo à legislação para o setor. Que o Código de Trabalho chegue a todos os trabalhadores da cultura e que as nossas especificidades sejam contempladas”.
Nas reivindicações que esta quinta-feira se vão ouvir é também levantada a questão da “proteção social”. Rui Galveias explica que é necessário que “sejam tomadas medidas de emergência já, medidas essas necessárias há dois meses”. O músico sindicalista pede mesmo um Fundo de Emergência Social “decisivo para garantir que as pessoas sobrevivem”.
O sindicato refere que as “poucas” medidas tomadas pelo Governo, “são insuficientes”. Segundo as palavras de Rui Galveias, “as pessoas estão mesmo a passar muitas dificuldades. Adiar impostos é fazer paliativos”
Num discurso duro, o representante do CENA – STE considera que as medidas são “preparar uma forca na corda destes trabalhadores, que vai apertar quando acabarem os apoios”.
Fazer contas ao teatro em tempo de pandemia
Os Artistas Unidos anunciaram, para 27 de agosto, a reabertura ao público do Teatro da Politécnica. Retomam a atividade com a peça “Uma Solidão demasiado ruidosa”, a partir do romance de Bohumil Hrabal, com encenação e atuação de António Simão. O ator diz à Renascença que viveu estes dias de confinamento como um “interregno” na carreira deste espetáculo que faz desde 1997.
A meio gás, por enquanto, os Artistas Unidos preparam o regresso do público, mas com muitas incógnitas.
Jorge Silva Melo, diretor dos Artistas Unidos, repete a palavra “contas” três vezes para explicar que é isso que lhe tem ocupado a mente desde que conheceu as novas regras da Direção Geral da Saúde (DGS) para os espetáculos.
“Ainda não percebemos que despesas extra vamos ter, quanto pessoal mais vamos ter de contratar. Acho que terão de ser cinco pessoas a mais. Os materiais que é preciso colocar, a remodelação da bilheteira, tudo isso, ainda não percebemos bem, porque as medidas da higienização só nos chegaram há três dias”, conta Silva Melo.
O encenador faz a contabilidade. “Podemos ter 37 espetadores, mas com uma despesa mensal acrescida de 8 a 10 mil euros” e conclui: “Não sei como conseguiremos. É impossível, é puro prejuízo”.
“Mesmo que esgotasse todos os dias com o preço mais alto, que é 10 euros, faríamos no máximo cinco mil euros num mês. Ora, num mês, além das nossas despesas, vamos ter mais oito a dez mil euros para o resto. É angustiante”, confessa o encenador.
Como é ensaiar de máscara?
Curiosamente, nesta altura os Artistas Unidos estão a ensaiar uma peça, para estrear a 30 de setembro, que fala sobre pessoas isoladas e confinadas. “Quartos”, do irlandês Endo Walsh, “é uma peça curiosa sobre pessoas fechadas em quartos”, Silva Melo.
Ironizando, o encenador aponta que “disso já sabemos nós tudo”. Silva Melo explica que este dramaturgo que agora vive nos Estados Unidos “sempre falou disto, de pessoas fechadas, sem poderem sair e com uma porta ao fundo”. Segundo Silva Melo, “é a reflexão sobre estes dias tremendos que passamos”.
Os ensaios já começaram, mas ainda fora do teatro. Os atores Américo Silva e Vânia Rodrigues estão a ensaiar em casa do encenador. Jorge Silva Melo explica que tem “uma casa grande, janelas muito grandes”, por isso, “é como se estivesse ao ar livre” e admite: “até posso fumar e não usar máscara!”
Mas o que vai acontecer quando os ensaios se mudarem para o teatro? “Não sei como vai ser”, reconhece Silva Melo. “Ensaios no teatro com máscara? No encenador até imagino, mas nos atores, não sei como será. Não ver a cara dos atores... ainda se fosse o Zorro, via-se a boca, mas aqui nem isso. E eles não são a Elizabeth Taylor que exprimia tudo nos olhos!”, ironiza Silva Melo.
“Não poderemos fazer sempre peças sobre pessoas fechadas em casa. Não poderemos fazer sempre peças a três metros dos espetadores. Agora remedeia-se, é uma solução curiosa e esperta, mas não é isto, aquilo que pode ser o teatro”, desabafa Silva Melo.
Vivemos, no entender do encenador dos Artistas Unidos, “a era da desconfiança”. “O olhar de desconfiança e de ódio são naturais, porque estamos todos a ser convidados a desconfiar do próximo, seja ele negro, constipado, o que seja”, afirma Silva Melo, que considera que a sua profissão “está em grande risco, não apenas económico, mas também social”.
Também o músico Rui Galveias tem dificuldade em perspetivar ensaios de máscara. “Não será nunca normal”, indica o representante do CENA - STE, que usa os versos de uma canção de Sérgio Godinho para concluir que espera que seja “só um tempo que passou”.
Rui Galveias sabe que, por exemplo, os pequenos agrupamentos musicais estão a conseguir fazer os ensaios, mas “para os coros é impossível” e também para as “orquestras é complexo”, porque há a partilha de partituras, por exemplo. “Para as grandes orquestras vai ser muito difícil. Vão ter de se organizar em pequenas orquestras de câmara com distanciamento”.