Depois da troika a pandemia. Quatro vidas perseguidas pelas crises
19-04-2021 - 20:20
 • Ana Carrilho

Maggy perdeu o emprego no tempo da troika, reergueu-se para levar uma nova pancada com a Covid-19 que paralisou o setor do turismo e o seu tuk-tuk. António, Clara e Joana também partilham as suas histórias ou das suas empresas atingidas pelas crises da última década.

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Os efeitos da Covid-19 vão além da crise de saúde e sanitária. Estão já a mostrar uma crise social e económica que deverá acentuar-se nos próximos meses, quando terminarem os apoios à recuperação e à manutenção do emprego e as empresas começarem a fazer despedimentos. Ou quando as moratórias terminarem e empresas e famílias tiverem que pagar o que devem.

Mas há pessoas para quem esta crise não é uma estreia nas dificuldades. Algumas já tinham sido atingidas pela crise económica e financeira que levou à entrada da troika em Portugal. É o caso de Maggy, António Robalo, Clara Gonçalves e Joana Tavares, que contaram à Renascença as suas histórias ou das suas empresas atingidas pelas crises da última década.

Maggy, a pandemia encostou o tuk-tuk

Nasceu em França e recebeu o nome de Margarette. Quando veio para Portugal, há mais de 30 anos, teve de adotar o “Margarida”. Mas é por Maggy, como lhe chamava a mãe, que responde e muitos a conhecem.

As férias de adolescente em Lisboa despertaram a paixão e enquanto não se mudou, já formada, não descansou. Durante vários anos trabalhou como analista clínica. Em 2012, em plena crise económica, quando o grande grupo de laboratórios decidiu dispensar 70 funcionários, Maggy estava no lote.

Era já analista superior e auferia um vencimento elevado. O seu trabalho e o de outros colegas na mesma situação, que já eram também formadores, foi substituído pelo dos antigos formandos, “que ganhavam um terço”. Aos 45 anos, não conseguiu voltar ao mercado de trabalho na sua área.

Foram tempos complicados e que também coincidiram com o divórcio. “Nunca tinha estado desempregada e ouvir os vizinhos, de manhã, saírem para o trabalho, regressarem e continuar em casa sem saber o que fazer, é muito difícil”, confessa à Renascença.

Maggy, que se considera “uma eterna turista em Lisboa”, começou a ajudar uns amigos que trabalhavam no turismo. Entusiasmou-se e, mesmo contrariando o conselho de pessoas que lhe diziam “para não se meter nisso”, decidiu: “é agora ou nunca”. Agarrou numa parte da indemnização por despedimento e, em 2016, comprou um tuk-tuk.

Tem a vantagem de falar bem francês – o que não acontece com a maioria dos outros guias – e encontrou um nicho de mercado. Havia muitos turistas franceses em Lisboa e depois, o “bouche à l’oreille”, o “passa palavra” recomendava a “LoveLisbonne” e Maggy aos amigos para conhecer a capital portuguesa e os arredores, sobretudo a sul do Tejo.

Ao mesmo tempo, Maggy começou a promover a sua empresa nas redes sociais e a trabalhar com plataformas online. O negócio corria bem. Passou a ter clientes de outros países, há três anos comprou outro tuk-tuk elétrico e arranjou dois colaboradores para trabalharem como free-lancers.


Mas em 2020, “a pandemia veio dar cabo de tudo. De um dia para o outro ficámos sem trabalho, Não havia turistas, não havia voos, não havia nada. O ano passado ainda conseguimos trabalhar um bocadinho no verão, mas a quebra de faturação foi de 90%”.

Ironicamente, foi na sua área original que Maggy voltou a arranjar algum trabalho. “Estou como técnica substituta num grupo de análises clínicas. Faço colheitas de sangue, testes Covid, etc. Quando é preciso substituir alguma colega, chamam-me, mas estou a recibos verdes”.

Como a sua empresa de animação turística teve uma grande quebra de faturação, tem direito à ajuda do Programa APOIAR. Além disso, aproveita todas as formações gratuitas do Turismo de Portugal para dinamizar o seu negócio.

E não abranda a promoção. “Todos os dias faço um post com uma ou duas fotos de Lisboa, faço um ‘live’, mesmo com a cidade vazia ou com o pôr do sol, falo um bocadinho, consigo fazer alguns concursos nas redes sociais.”

Maggy aposta num trabalho personalizado, à medida das necessidades dos seus clientes, alguns já de certa idade ou com mobilidade reduzida. “Tento acarinhar as pessoas que já me seguem para que a ‘LoveLisbonne’ não caia no esquecimento. Somos cinco estrelas no Trip Advisor e quero manter”.

Os anos do “boom turístico” deram para fazer um pé de meia que tem ajudado a suportar um ano sem atividade, mas a meia “já está a ficar furada”. Os tuk-tuk estão parados, é preciso garantir a sua manutenção, a renda da garagem, assim como outras despesas fixas. Além disso teve de investir na segurança sanitária. Quando retomar a atividade Maggy já sabe que não poderá transportar tantas pessoas e terão de ser todas da mesma família. O rendimento será menor.

Mas a vontade de mostrar “os outros rostos de Lisboa”, pouco habituais nos circuitos turísticos é grande. “Vou a alguns sítios com as pessoas que elas, só com o livrinho, nunca lá chegariam”. E lamenta que muitas lojinhas onde costumava levar os turistas não tenham conseguido resistir.

“Acho que este ano não vai ser muito melhor que o ano passado, mas vamos ter esperança”, espera a guia turística.

Grande armazém resistente vive a maior crise

Com 85 anos de história, a Pollux – que tem a sua loja mais emblemática na Rua dos Fanqueiros, em Lisboa – está desde 1988 nas mãos do Grupo António Robalo.

O administrador António Manuel Robalo não tem dúvidas: “esta é a pior crise que atravessamos desde que adquirimos a Pollux. Não é sequer comparável com a de 2012 porque esta é global. O ano de 2020 foi mau e este está a ser pior”.

As décadas de 80 e 90 foram muito boas e de crescimento claro. Foi nessa altura que fizemos a nossa “almofada”, revela o empresário à Renascença. Mas refere outro momento marcante na estagnação do negócio: a adesão ao euro. “Foi aí que começou o problema, devido à relação cambial disparatada. Neste século as coisas não ajudaram. Com a crise económica e a quebra nos rendimentos, as pessoas também começaram a comprar menos. A reserva já foi toda e a almofada está lisinha, lisinha”.

A pandemia e os confinamentos determinaram o encerramento das lojas em Lisboa, Porto, Almada, Amadora, Aveiro e em Vila Franca de Xira, onde o grupo tem a sua sede. Durante dois meses em 2020 e há mais de três meses este ano, quase 90% dos funcionários foram para casa, ao abrigo do “lay-off” simplificado. Para o administrador, com as lojas fechadas, não havia outro remédio.


A quebra de faturação geral, o ano passado foi de 26%, mas olhando especificamente para a área da hotelaria, de que a empresa é grande fornecedora, a redução foi superior a 45%.

A Pollux recorreu aos apoios disponibilizados pelo Governo para a manutenção do emprego. Apesar de considerar que são insuficientes, porque uma empresa deste tipo tem despesas fixas significativas (rendas de lojas, água, luz, taxas, manutenção), António Robalo admite que “sem esses apoios, seria o descalabro no desemprego, para a Pollux ou qualquer empresa”. Assim, ajudaram a manter os cerca de cem postos de trabalho efetivos.

António Robalo garante à Renascença que tem intenções de os manter, porque “todos são necessários para ter as lojas abertas ao público”. Mais difícil é fazer tantas contratações a termo como fazia antes para as épocas de maior procura, como o Natal ou para substituir pessoas em férias. Ainda assim, como há pessoas que trabalham na Pollux há várias décadas e se vão reformando, por exemplo, o ano passado – mesmo com menos atividade - três trabalhadores contratados a termo passaram a efetivos.

Ao contrário de outras, esta não é uma atividade que possa passar para o online porque os clientes gostam de ir às lojas, ver, mexer. Mas durante a pandemia as vendas através deste canal, duplicaram e é nelas que têm trabalhado as pessoas que não foram incluídas no lay-off simplificado.

António Robalo dá o ano de 2021 por perdido, tal como aconteceu com 2020. Mas mostra-se otimista quanto a uma recuperação a partir de 2022. As portas reabriram esta segunda-feira e espera que tudo volte a funcionar normalmente e sem novas interrupções.

Joana (sem apoios) receia ser despejada com os filhos

Em 2012, Joana Tavares tinha 20 anos, tinha acabado de ser mãe e não tinha trabalho. Confiante na ajuda de familiares que viviam há vários anos em Inglaterra, pegou na filha de apenas quatro meses e emigrou. A realidade mostrou-se diferente da que esperava e, à Renascença, revela que a adaptação, no primeiro ano, foi muito difícil.

Trabalhou quase sempre na área da restauração e chegou a ser gerente. Quase seis anos depois, embora já tivesse uma situação estável, decidiu com o seu companheiro de então e pai do terceiro filho, aproveitar as poupanças de emigrante e voltar a Portugal. O regresso foi incentivado por familiares e amigos que lhes garantiam que a situação do país era melhor.

Joana acreditava que aqui poderia criar os filhos e trabalhar. Mas uma nova gravidez, a separação e a pandemia, deitaram por terra as hipóteses de arranjar um emprego, assim como uma creche onde pudesse deixar os dois filhos mais novos.

É o ex-companheiro quem assume o pagamento de 400 euros de renda de casa, onde vive com três dos quatro filhos.


Apesar da insistência com a senhoria, não tem contrato de arrendamento para a casa de duas assoalhadas, degradada e que – soube recentemente – terá de abandonar em setembro porque vai para obras.

Esse é agora o seu maior desespero porque não é fácil arranjar outra habitação na mesma zona (Penha de França, em Lisboa) e de onde não gostaria de sair, a não ser que não tenha alternativa. O ex-companheiro vive perto, é “um pai muito presente para os filhos” e o grande apoio para Joana.

Esta mãe, atualmente, não tem qualquer rendimento pessoal e confessa à Renascença que nunca pensou ter de viver do Rendimento Social de Inserção (RSI). Mas é precisamente esse subsídio que espera conseguir o mais rapidamente possível, enquanto não arranja emprego. Até lá, vive com os 300 euros do abono dos filhos e o dinheiro do cartão de refeição do pai das crianças mais novas.

Já fez contactos com a junta de freguesia e poderá ter um agendamento para maio. Entretanto, procurou ajuda na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, mas o apoio poderá ser apenas alimentar. Garante que está inscrita no Instituto de Emprego. No entanto, ainda não foi contactada.

Não exclui a hipótese de voltar a emigrar. Apesar das dificuldades que todos os países vivem, Joana fala em “Espanha, Itália ou voltar a Inglaterra”, onde vive um dos seus filhos, com o pai e que já não vê desde outubro.

E também não desiste de realizar o sonho de “abrir um negócio, talvez um hostel, um bed&breakfast”, com ajuda de uma amiga que tem o capital e conhece a experiência de Joana com gerente na área da restauração. “É uma luz ao fundo do túnel”.

Entretanto, já no âmbito da preparação desta reportagem, Joana conseguiu ter alguma orientação da Segurança Social em relação aos passos a seguir para conseguir os apoios mais adequados à sua situação. E está otimista.

Clara, a guerreira que quer ser um exemplo

Maria Clara Gonçalves tem 60 anos e, noutros tempos, viveu uma vida de sonho, “anos de ouro, à custa de muito trabalho, mas que nos levou a bom porto”, confessa à Renascença. É o retrato fiel de alguém atingido pelas duas crises: económica e pandémica.

Foi casada com um construtor civil que, na altura em que os negócios corriam de feição, expandiu a atividade para o Algarve. Clara ficou por Sintra, deixou o seu emprego e passou a trabalhar no escritório da construtora, acompanhando mais de perto as três filhas do casal.


Mas tudo mudou com a crise económica e a chegada da troika. Instalou-se uma grande instabilidade na construção e sobretudo, nas vendas. E no Algarve, notou-se muito. As aplicações era muitas e os pequenos construtores não vivem sem os bancos, é impossível. Com as vendas paradas, foi cair a pique. Em menos de três anos fomos do céu ao inferno. As portas fecharam-se todas. E tornou-se tudo muito complicado, tanto a nível empresarial como familiar, porque está tudo ligado”.

A empresa ficou insolvente, perderam as casas e a quinta que tinham no Algarve. Pouco tempo depois, o marido de Clara faleceu e todas a dívidas caíram sobre ela. O subsídio de desemprego, “400 e tal euros”, nem sequer chegava para as despesas da moradia em Sintra, onde vivia com a filha mais nova, ainda menor. As mais velhas já eram casadas.

Anos depois, Maria Clara continua sem conseguir esconder a revolta pelo património perdido que, garante, era muito superior à dívida. Afirma que a moradia estava avaliada em 600 mil euros e devia 200 mil. No entanto, o banco recusou-se a negociar e a família perdeu a casa.

Vendeu todo o recheio que conseguiu e alugou um pequeno apartamento. Respondeu a anúncios e há sete anos começou a fazer limpezas. Ao mesmo tempo, para ajudar o orçamento familiar e porque sempre gostou de costura, foi criando algumas peças, que passou a vender em mercados, ao fim de semana. Incentivada pelas filhas, criou uma página no Facebook para a sua “Agulha&dedal”, que vai alimentando com as novidades.

Clara faz as contas e diz que, antes da pandemia, conseguia à volta de 680 euros mensais nas limpezas e com os mercados, tinha “um rendimento razoável”. Mas a Covid fechou os mercados, as limpezas estão reduzidas a metade e consequentemente, também o que daí recebe.

Pela suspensão da atividade como artesã recebe 219 euros de apoio do Estado. E voltou a ter que “contar os trocos” para conseguir pagar os 300 euros de renda de casa e as outras despesas fixas e essenciais. Em caso de aperto, tem a ajuda das filhas. No entanto, espera que os mercados voltem a funcionar, rapidamente. E de preferência, com bom tempo.

Apesar das adversidades, Maria Clara diz que sempre foi uma guerreira e faz questão de deixar uma mensagem de esperança e de incentivo. Gosta de pensar que pode ser um bom exemplo para outras pessoas que passem por dificuldades. “Não desistam, temos que nos agarrar a qualquer coisa. Eu bati no fundo, chorei muito e tive momentos de muita revolta. Mas é preciso levantar a cabeça e ir à luta. Foi o que eu fiz”.