Falemos então de apagões. Imaginemos verdadeiros apagões no mundo físico, humano, analógico. E se o apagão não tivesse atingido as “redes sociais” da internet, mas sim as verdades redes sociais da sociedade? Por exemplo: e se tivéssemos ficado seis horas, um dia de trabalho, sem as trabalhadoras de escolas, jardins-infantis e IPSS que cuidam dos nossos velhos e das nossas crianças? Seria o caos. O pânico seria a moeda corrente. Não ter onde deixar os nossos filhos não é bem a mesma coisa que não ter onde deixar um like.
Estas pessoas, quase sempre mulheres, têm tanto de invisível como de fundamental. Não tem sindicatos e corporações. Quase ninguém fala por elas. Mas, se unissem as suas vozes num uníssono, o país tremeria; os países tremeriam, porque esta é uma questão ocidental e não apenas portuguesa. E é uma questão que pode ser colocada desta forma: apesar de desempenharem uma das funções mais vitais da sociedade, cuidar de velhos e crianças, estas mulheres ganham uma miséria franciscana. Como dizem Anne-Marie Slaughter e Hilary Cottam nesta peça da Atlantic, há qualquer coisa de errado numa sociedade que paga tão pouco e que presta tão pouca atenção ao sector social que cuida dos membros mais frágeis da sociedade.
Este trabalho do sector social precisa de ser olhado de outra forma, até porque é mesmo um trabalho indispensável: sem o trabalho destas mulheres, todos os outros trabalhos tornam-se impossíveis. Se não tivéssemos centros onde colocar as crianças e os idosos, nós não poderíamos ir trabalhar. Além de serem indispensáveis para a sociedade como um todo, são imprescindíveis para os alvos diretos do seu trabalho. Por exemplo, quem tem contacto próximo com idosos já percebeu o impacto causado pelos confinamentos e pela suspensão da atividade das IPSS: os sinais da senilidade tornaram-se galopantes.
Onde é que eu quero chegar? Tendo em conta o crescente envelhecimento da população, parece-me claro que precisamos de um novo contrato social que preste mais atenção simbólica e monetária a duas figuras: o cuidador familiar (a filha que cuida do pai acamado) e sobretudo a trabalhadora do sector social (que cuida de idosos e de crianças em IPSS).
Se nada mudar, se mantivermos o quadro atual, a sociedade aproximar-se-á daquilo que o Papa Francisco apelidou de "eutanásia indirecta". Ao manter o cuidado dos idosos longe das prioridades familiares, sociais e políticas, nós, como sociedade, estamos de facto a criar as condições para o abandono mais ou menos explícito das camadas mais pobres da terceira idade.