De forma ilegal, e violando até a Constituição, a administração pública continua a exigir em muitos serviços, a quem quer ser atendido de forma presencial, que faça previamente o agendamento, como acontecia no auge da Covid-19.
A prática deu origem a uma queixa da Associação ProPública Direito e Cidadania ao Presidente da República, por ser o garante do cumprimento da Constituição.
Foi com surpresa que a associação cívica recebeu como resposta que o assunto não era da competência do Presidente da República. Em declarações ao programa Em Nome da Lei da Renascença, a vice-presidente da ProPública, Maria da Conceição Botas, explica que, “basicamente, a Casa Civil do Presidente da República encaminhou-nos para o primeiro-ministro, alegando que a matéria não cabia nas suas competências”.
O advogado Garcia Pereira indigna-se com a posição transmitida por Belém e considera "completamente surreal que o Presidente da República ou os seus serviços se atrevam a responder a uma associação que luta pela defesa dos direitos dos cidadãos que o assunto não é com ele, é com o Governo".
"Então, e o respeito pela Constituição? Os princípios fundamentais de funcionamento dos serviços do Estado não são um princípio constitucional? E a quem é que compete cumprir e fazer cumprir a Constituição senão ao Presidente da República? Depois chega ao primeiro-ministro e ele também acha que não é com ele, chuta provavelmente para o secretário de Estado, se não for para o diretor-geral, para o chefe de gabinete ou mesmo para o assessor ou para outra coisa qualquer.”
Garcia Pereira defende que a “inconstitucionalidade é claríssima” porque, na prática, deixou de existir o direito dos cidadãos ao livre e direto acesso aos serviços da administração pública, que está garantido expressamente na Constituição.
Na nota de imprensa, a Associação ProPública Direito e Cidadania cita o constitucionalista Marcelo Rebelo de Sousa, que enquanto académico afirmou que” o interesse público é o norte da Administração Pública”.
A associação de defesa jurídica do interesse público argumenta que “a marcação com antecedência para atendimento presencial nos serviços públicos era uma exigência resultante das medidas de mitigação da pandemia Covid-19, apenas justificada legalmente por força do estado de emergência”.
“Portugal não está em estado de emergência desde 30 de abril de 2021. O estado de alerta, que cessou aliás em 30 de setembro deste ano, não permitia as restrições de acesso que as estruturas da Administração continuaram e continuam a impor. Isto é; o direito dos particulares a serviços públicos acessíveis, expeditos e não discriminatórios está a ser ofendido há mais de um ano e meio”, sublinha.
Garcia Pereira explica que manter as restrições impostas no auge da pandemia dá jeito ao Estado, que assim vai empurrando muitos problemas com a barriga.
“Isto é um funil, porque isto significa em muitas repartições, por exemplo nas Finanças, que as pessoas dirigem-se lá e dizem-lhe: ‘só pode ser atendido por marcação!’ E agora há uma lógica nas Finanças em que o que é simples, até pode ser resolvido presencialmente. Aquilo que é mais complicado tem de ser marcado. E espera-se um mês, dois, três, quatro.”
O advogado e professor jubilado diz que a Administração Pública “continua a tratar as pessoas, não como cidadãos de direitos, mas como súbditos”.
A lógica “continua a ser: manda quem pode, obedece quem deve”.
Garcia Pereira recorda que “o Estado reservou para os conflitos que possam surgir no domínio do exercício dos seus poderes uma jurisdição que são os Tribunais Administrativos e Fiscais, que são um verdadeiro poço sem fundo, e que conferem um grau elevadíssimo de inefetividade às leis nesta matéria.”
“Falta de meios humanos e de planeamento”
O secretário-geral da Federação dos Sindicatos da Administração Pública (Fesap), José Abraão, reconhece que” há degradação do serviço público”, mas defende que o problema já é antigo.
O congestionamento dos serviços do Estado é anterior à pandemia, diz José Abraão. “Já se esqueceram das filas às portas dos serviços? Das dificuldades, das marcações que também eram necessárias antes para resolver problemas dos cidadãos, fosse nos serviços do Instituto de Registos e Notariado, para obter a nacionalidade, fosse na Segurança Social, para obter o número de identificação da Segurança Social, fosse nas Finanças, para o NIF. No último verão, houve trabalhadores emigrantes que vieram para o nosso país, queriam registar os filhos, queriam tratar da sua pensão, queriam aproveitar as férias para tratar de um conjunto de coisas, e não conseguiram.”
O mau funcionamento dos serviços públicos resulta da “falta de meios humanos e da ausência de planeamento”, defende o secretário-geral da Fesap.
“Para que fosse possível o regresso à normalidade nos serviços públicos era preciso, por exemplo, que o ministro das Finanças desbloqueasse o concurso para 200 novos funcionários do Instituto de Registo e Notariado das finanças”, reclama José Abraão.
O sindicalista diz que o direito a ser atendido presencialmente tem de ser garantido a 100% e não pela metade, como veio já esta semana o Governo prometer.
A ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, anunciou esta semana que o Governo deu orientações a todos os serviços da administração pública para que 50% dos atendimentos aos cidadãos se realizem sem necessidade de marcação prévia. Uma promessa com que Maria da Conceição Botas se congratula, por considerar ser um resultado da queixa que a Propública Direito e Cidadania também apresentou ao Governo.
Mas o dirigente sindical José Abraão considera que a medida não faz sentido: ”Ou temos o direito constitucionalmente garantido ou não. Não é só meio direito. Temos é que ter o problema claramente resolvido”.
São declarações ao programa Em Nome da Lei da Renascença, que debateu a degradação dos serviços públicos e os atropelos à legalidade que são cometidos em alguns serviços, impondo nomeadamente a necessidade de agendamento prévio do atendimento.
O programa é transmitido aos sábados pela Renascença e está sempre disponível no site e nas plataformas de podcast.