Muitos saudaram como um marco histórico a aprovação pelas câmaras parlamentares francesas do projeto de revisão da Constituição que reconhece o direito ao aborto como direito fundamental. Uma aprovação por uma maioria esmagadora de deputados, da extrema esquerda à extrema direita, passando pelo centro. Entretanto, o presidente Macron propõe também incluir esse pretenso direito na Carta Europeia dos Direitos Fundamentais. Entre nós, surgiu logo a proposta de alguns políticos de seguir este exemplo francês.
Vem-me à memória o que muitos diziam quando a legalização do aborto (que era então apresentada como simples despenalização) foi inicialmente discutida em Portugal: «somos todos contra o aborto, só não queremos a prisão das mulheres»; «somos contra o aborto, só queremos eliminar o aborto clandestino e o problema de saúde pública que representa». Ou também o tão proclamado propósito: «o aborto deve ser legal, seguro e raro». Reconhecia-se, então, que o aborto era um mal que não devia ser promovido, tendencialmente deveria ser evitado, embora fosse, de algum modo, inevitável. Que havia que equilibrar, segundo o critério designada como de “concordância prática”, a proteção da vida do feto com a proteção da liberdade da mulher grávida.
Já então se alertava, do outro lado da contenda, para o perigo de assim derrubar o alicerce que representa o princípio da inviolabilidade da vida humana (superior ao da liberdade pessoal), como o início de uma “rampa deslizante” que não é possível deter. E também se dizia que à mulher grávida em dificuldade não pode ser dada apenas, pelo Estado e pela sociedade, a escolha entre aborto clandestino e aborto legal.
Agora, com este pretenso reconhecimento do aborto como direito fundamental (colocado a par de todos os outros direitos fundamentais elencados em declarações internacionais e Constituições nacionais) cai por terra a noção do aborto como um mal. O objeto de um direito, e ainda mais de um direito fundamental, não pode deixar de ser um bem. Não tem sentido não promover, evitar ou limitar o acesso a esse bem.
Reconhecer o direito ao aborto como direito fundamental abre a porta às leis mais extremistas (como as que já estão a ser proposta em alguns Estados norte-americanos) que afastam as (muitas ou poucas) limitações ao exercício desse direito, incluindo as relativas ao tempo de gestação do feto (já não apenas dez ou doze semanas). Torna muito mais frágil o exercício da objeção de consciência de profissionais de saúde, encarada com obstáculo ao exercício de um direito fundamental (os governantes franceses disseram que ela não está em causa, mas teme-se, justificadamente, que venha a estar). Faz prevalecer em absoluto a liberdade da mulher sobre a vida do nascituro (para além de qualquer ponderação entre esses dois valores). Afasta definitivamente a preocupação de que o aborto seja raro: aos deputados franceses parece não impressionar o número de abortos que, no seu país, não pára de aumentar (os últimos conhecidos apontam para 234 mil por ano, sendo os nascimentos cerca de 728 mil – ver Avvenire, 5/3/2024). Tal como afasta qualquer política que promova alternativas ao aborto junto de mulheres grávidas em dificuldade.
Outro aspeto que denota o extremismo a que se chega hoje nas mentalidades e nas leis de vários países no que à legalização do aborto diz respeito é a tendência de, pura e simplesmente, encarar essa legislação como algo de absolutamente irreversível e, até, indiscutível. Isso foi bem nítido na recente campanha eleitoral: falar apenas na hipótese de um referendo onde se pudesse discutir a lei vigente (o que se fez insistentemente até que essa lei fosse aprovada depois de um primeiro referendo em que havia sido rejeitada) causou o maior dos escândalos e nem sequer se discutiu essa hipótese. Mas muitos nem devem ter reparado em propostas de alguns partidos de alteração dessa lei num sentido da ampliação do prazo legal de recurso ao aborto (por sinal, sem necessidade de qualquer referendo). E também não causou escândalo a proposta de revisão da Constituição seguindo o exemplo francês. Definir o direito ao aborto como direito fundamental constitucionalmente consagrado é, na verdade, arredar a sua discussão do normal debate de política legislativa (o debate que é próprio de uma democracia), como se fosse assunto definitivamente encerrado.
Expressão paradigmática desse extremismo que impõe um pensamento único nesta questão são também as leis que proíbem qualquer tentativa de, em zonas próximas de locais de prática de abortos (as chamadas buffet zones, zonas de segurança), dissuadir mulheres de a ele recorrer, mesmo que sem qualquer uso de alguma forma de coação, assédio ou ofensa (que sempre seriam reprováveis), mesmo que através de simples informação sobre alternativas e ofertas de apoio. Chega a proibir-se a oração silenciosa, como se até ao núcleo mais íntimo da pessoa se estendesse a proibição. Na Escócia está atualmente em discussão uma lei dessas, que estabelece uma “zona de segurança” de duzentos metros, onde são proibidas quaisquer ações ou atitudes (incluindo a oração em silêncio) que possam influir na decisão da mulher que se dirige a esses locais para abortar. Essa proibição estende-se a casas de habitação privadas, onde não será possível colocar à vista qualquer escrito ou imagem que reprove o aborto. Um responsável da Igreja católica da Escócia afirmou, sobre esta proposta, que ela viola as liberdades religiosa, de consciência, de expressão e de reunião (ver Catholic News Agency, 14/10/2023).
Recordo-me de em tempos ver associadas as propostas de legalização do aborto à ideia de tolerância e ainda hoje se associam as propostas contrárias a essa legalização a um extremismo fundamentalista. Mas estas situações que aqui descrevo é que, em meu entender, espelham uma forma de extremismo fundamentalista. Também muito se salienta hoje o perigo de correntes políticas extremistas que fazem perigar os direitos humanos. Salvo o devido respeito pela boa fé de quem assim não pensa, considerar o direito a suprimir a vida do ser humano mais frágil e inocente como um direito fundamental não é um perigo menor para os direitos humanos.
*Pedro Vaz Patto é Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz