​Novo filme de Sérgio Tréfaut. “Filmei o Titanic antes do naufrágio”
16-09-2021 - 06:46
 • Maria João Costa

“Paraíso” estreia hoje. Sérgio Tréfaut regressou ao Brasil natal para retratar uma realidade que a pandemia matou. O realizador filmou um grupo de seniores que se juntavam para cantar nos jardins públicos no Rio de Janeiro.

“É impossível entrar em qualquer táxi ou loja no Brasil e as pessoas, ao ouvirem o seu sotaque estrangeiro, não perguntem: ‘como é que eu faço para ir embora?’” Foi a este Brasil do século XXI, com Bolsonaro na presidência, e onde já morreram mais de 600 mil pessoas por causa da Covid-19 que o realizador Sérgio Tréfaut regressou.

Mais de 40 anos depois de ter saído do Brasil, o cineasta foi à procura do seu “paraíso”. O retrato está no mais recente documentário que chega esta quinta-feira às salas de cinema.

“Paraíso” é um filme que retrata um grupo de brasileiros para quem a música é uma terapia. Juntavam-se antes da pandemia num jardim público para cantar. O filme mostra essa tradição, antes da pandemia e da Covid-19 ter tirado a vida a alguns deles que esperaram por socorro à porta dos hospitais. Em entrevista ao Ensaio Geral da Renascença, Tréfaut diz que este não é um filme político.

“Paraíso” é um documentário que marca o regresso à sua terra natal, e retrata uma realidade em extinção, a de um grupo de seniores que se reúne para cantar. Em que sentido este é um retrato de um certo "paraíso"?

O Brasil é muitas vezes retratado como Novo Mundo, como paraíso. Eu, como saí do Brasil quando era pequeno e fui reencontrar o Brasil, procurei encontrar algo que correspondesse a isso. Deparei-me com uma espécie de ilha num jardim público, que é o Jardim do Palácio do Catete, onde pessoas de 80, 100 anos cantam canções que fazem parte do património nacional. Uma espécie de ancestralidade que é muito comovente.

Como refere no filme, alguns desses cantores morreram, entretanto, vítimas da Covid-19.

Antes da pandemia, quando os escolhi filmar, eles já eram uma espécie de ilha de sobreviventes de um mundo em desaparecimento. Com a pandemia, e com a forma como a pandemia foi tratada pelo Governo brasileiro, eles mais em extinção ficaram. Alguns morreram rapidamente logo no início da pandemia, ficaram à porta de hospitais e não tiveram sequer a possibilidade de serem tratados, outros morreram mais tarde.


Chegou a mostrar-lhes o filme?

Os sobreviventes são pessoas maravilhosas e lindas para quem eu fiz uma projeção no Jardim do Catete, depois de todos estarem duplamente vacinados e vieram todos de máscara. Eles não podem mais reunir-se como antigamente. Não podem mais cantar num jardim público como cantavam. A vacinação no Brasil não funciona com a mesma rapidez do que em Portugal. Também é uma população que não tem uma imunidade tão forte, em que a vacina não tem um efeito imediato. Então, filmei de facto algo que é como o Titanic antes do naufrágio.

Para estas pessoas que retrata em “Paraíso”, a música é uma espécie de combustível de sobrevivência?

A música tem virtudes terapêuticas. O convívio de cantar tem virtudes terapêuticas claras. Já tinha retratado isso noutro filme anterior, o "Alentejo Alentejo". Quer o cante, quer o fado têm essa virtude terapêutica. Muitos psiquiatras que receitam antidepressivos perderiam clientela, e as farmácias perderiam a venda de remédios se as pessoas passassem a reunir e a cantar. É algo que os transforma por dentro.

Neste filme, há personagens que falam da sua depressão curada ao irem para o jardim cantar. Há uma senhora que diz que, finalmente, ficou feliz e conseguiu realizar-se quando foi a esse jardim cantar com as pessoas da sua idade. Sim, a música e as canções fazem em nós alguma coisa!

Este filme, não sendo sobre o atual governo de Bolsonaro, acaba por mostrar um Brasil que está a morrer e a desaparecer fruto também da atuação política. É nesse sentido um filme político?

Esse filme, “Paraíso”, não é nada programático ou político. Mas a realidade é que eu tive a sorte e a felicidade de poder filmar no Brasil, com meios europeus, no momento em que todos os meus colegas brasileiros foram proibidos de filmar. Proibidos, não porque houvesse um decreto a proibir, mas porque todos os financiamentos foram cortados. A entidade que tutela o cinema, foi congelada. Todas as pessoas queriam emigrar. A crise económica brasileira que já era muito forte, aumentou e é impossível você entrar em qualquer táxi ou loja no Brasil e as pessoas, ao ouvirem o seu sotaque estrangeiro, não perguntem "como é que eu faço para ir embora?"


As pessoas querem fugir do Brasil também por causa da pandemia?

A semana que vem, dia 23 ou 24, será apresentado o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito à Covid. O Brasil é o único país no mundo que teve um parlamento a fazer um inquérito sobre como o Governo tinha atuado relativamente à pandemia e a apurar crimes. Esses crimes estão mais do que apurados.

Os relatórios vão aparecer e são enviados para todas as instâncias, inclusive para o Tribunal Internacional. Estamos a falar, entre outras coisas, de militares que foram colocados por Bolsonaro no Governo, e tentaram desviar um dólar por vacina. Isso não aconteceu, mas eles recusavam e-mails da Pfizer a oferecer vacinas para ir negociar umas vacinas que chegariam mais tarde, onde eles teriam benefício de um dólar por vacina. Estamos a falar de biliões de lucro!

É um Governo que tratou a Covid como uma "gripezinha"! Estamos a falar de 580 mil mortos! Tratar isso como uma "gripezinha, descredibilizar a vacina dizendo que quem se vacina vira jacaré, descredibilizar o porte de máscara, quando os governos estaduais tentavam impor confinamento, como quase todos os países, o Presidente da República esperneava e lutava por todos os meios para impedir esses confinamentos, dizendo que a imunidade de rebanho se criaria quando morressem as pessoas que tivessem que morrer. Nós estamos a falar de crime, claro!

O “Paraíso” é um espelho que reflete sobre a velhice no Brasil. Acha que a tradição de cantar na rua não tem herdeiros?

Acho que o filme retrata essa população idosa de uma maneira que é muito brasileira, mas é também mundial. No mundo inteiro, as pessoas com 80 ou 90 anos estão um pouco na "prateleira". Como se a sua função social deixasse de ter tido lugar, como se elas parecessem desnecessárias e nem tivessem direito à felicidade e alegria.

O filme mostra que muitas pessoas dizem que, finalmente, nessa idade encontraram uma forma de felicidade e alegria, de estarem bem consigo mesmas. O canto que morre com quem morreu não desaparece, é uma transmissão geracional. Nesse filme, você tem os regadores com 20 e tal anos que cantam outra coisa, mas há uma série de valores que foram transmitidos de geração em geração e não acredito que possa desaparecer tudo.

O Sérgio Tréfaut está já a trabalhar noutro filme. Que filme é esse?

Estou na conclusão da montagem de uma ficção, intitulada "A Noiva", que foca o destino das jovens, neste caso, uma franco-portuguesa que deixaram a família, os pais de origem católica, aos 16 anos para fugirem para a Síria e se casarem com um jihadista. Há muitas. Há relatos que foram acompanhados pela imprensa em Portugal, pela imprensa inglesa e francesa.

O meu filme, pega nessa personagem quando ela tem 20 anos, após a queda do Estado Islâmico. Ela encontra-se num campo de prisioneiros e está com duas crianças, uma em cada braço, e está grávida de uma terceira. É viúva de dois jihadistas e tem aparentemente a vida pela frente. Mas que vida é que ela tem pela frente? Onde é que ela se encontra? O que está na cabeça de uma menina dessa idade?

Quis fazer um filme em que tento entender o que é uma menina dessa idade que foi por um caminho tão suicidário. Tive uma sorte enorme de encontrar uma jovem atriz portuguesa, a Joana Bernardo, que aprendeu árabe e francês e que interpreta magnificamente as ambivalências e os mistérios dessa personagem.