A Coreia é um país com uma das histórias contemporâneas mais agitadas e sangrentas do mundo. Periferia de uma China imperial que dela cuidava pouco, foi, na viragem para o século XX, invadida e anexada pelo vizinho Japão. No rescaldo da II Guerra Mundial, finda a dominação nipónica, Moscovo e Washington estabeleceram na Coreia um condomínio semelhante ao que dividiu a Alemanha. Quando os EUA saíram da península, em 1950, Kim Il-sung, escudado por Estaline e Mao, invadiu o sul, ambicionando a unificação e integração de todo o país no bloco comunista. O resultado foi uma guerra que durou três anos, travada entre os dois blocos da nascente Guerra Fria, mas sobretudo sofrida pelo povo coreano: 3,5 milhões de mortos ou feridos, 100.000 crianças órfãs e, no fim, 10 milhões de pessoas dependentes de ajuda alimentar externa. O armistício de Panmunjom, em 1953 (puramente militar e não de reconciliação política) selou a divisão da Coreia entre o norte comunista, de Pyongyang, e o sul capitalista, de Seul. E até hoje, em rigor, nunca a paz foi assinada. “Para os coreanos, a guerra foi uma catástrofe nacional que deixou marcas que ainda não sararam e suplícios que ainda não desapareceram”, escreve Odd Arne Westad no seu clássico sobre a Guerra Fria. Para o mundo livre, a Coreia do Norte sumiu-se para lá do paralelo 38, silenciada pelo totalitarismo do regime, afligida pelo flagelo da fome e fechada como um dos lugares política e socialmente mais inóspitos do planeta.
Depois de “Kim-pai” veio “Kim-filho”; e desde há seis anos, ali reina “Kim-neto”, de seu nome Kim Jong-un, uma das figuras mais misteriosas, mais imperscrutáveis e mais imprevisíveis da atual cena mundial. Durante meses, divertiu-se a provocar esse outro “maverick” global chamado Donald Trump, com uma escalada de exibição de mísseis e de retórica nuclear apocalíptica, competindo com o presidente dos EUA sobre quem teria (ou terá) o “botão maior”. Depois, tornou-se mais sorridente e diplomático: defendeu uma equipa olímpica única para os Jogos de Inverno organizados na Coreia do Sul, foi a Pequim, recebeu o Diretor da CIA e, agora, sensacionalmente, cruzou a fronteira (gesto inédito) para se encontrar com o homólogo de Seul, Moon Jae-in, com quem apareceu de mão dada, a prometer a desnuclearização da Península e o paraíso para aquelas bandas. A cimeira na zona desmilitarizada de fronteira será para levar a sério? Depende. Será para desconfiar? Certamente. Dará frutos? Talvez. Tudo é, por ora, enigmático e um quebra-cabeça para os analistas de política internacional.
A reunificação da Coreia não é para já: no sul não se suporta o comunismo e no norte ainda se odeia o inimigo americano. Entretanto, não é impossível que Kim Jong-un tenha andado a subir a parada nuclear para forçar Washington a conceder-lhe um estatuto de potência… para depois sugerir e obter uma cimeira, a realizar, com Trump (veremos a coreografia da coisa, entre os dois artistas…). Em diálogo direto com os EUA, Kim diminuirá Seul e contornará mesmo Pequim, que é há muito “dona” do “quintal” norte-coreano, e trocará o que pode ter sempre sido um “bluff” nuclear por um lugar mais credível na diplomacia mundial. Ou, então, a abertura do líder de Pyongyang é a manobra de um desesperado. Pequim secundou Washington nas sanções mais recentes à Coreia do Norte e, juntamente com o Japão, está muito pouco interessada em ter de lidar com instabilidade naquela zona do mundo. Talvez, no fundo, os anúncios da desnuclearização sejam a moeda de compra para novas ajudas que reduzam a pobreza, a fome e o descontentamento que nunca deixaram de existir entre os milhões que tiveram o azar histórico de ficar confinados para lá do paralelo 38.