Diz que não tem dúvidas de que veio ao mundo para cantar, mas Salvador Sobral apresenta agora o seu disco “mais pessoal”. “bpm”, as siglas de Batimentos por Minuto, é um disco onde diz que expõe a sua “artéria aorta” e onde não só canta, como compôs as 14 canções.
Em entrevista ao Ensaio Geral da Renascença, o músico admite que arriscou “uma nova cor sonora”.
Produzido por Leo Aldrey, o disco foi escrito e gravado em plena pandemia. O confinamento “foi muito produtivo”, admite Salvador Sobral, porque, "de outra forma", nunca poderia se "concentrar tanto na composição deste novo álbum”.
“Sangue do meu Sangue” é o single de estreia de “bpm”, uma sigla que o “acompanhou muito no hospital” durante o transplante de coração e que é o elemento musical “no meio daquela experiência hospitalar muito louca”.
É um álbum onde não só canta como compôs as músicas. Pode dizer-se que é o seu disco mais pessoal?
Compus todas as canções e acompanhei o processo desde que as canções eram puras “semillas” [sementes em castelhano], como nós chamávamos, até ao processo de fazer os arranjos, tocá-las com a banda, gravá-las, misturá-las, pós produzi-las.
Foi um processo muito longo e extenso, e claro, isso faz com que as canções sejam mais minhas. Acho que se pode chamar este o trabalho mais pessoal, sim, até agora.
Escreveu um texto sobre o disco em que diz que “a proposta deste novo disco é expor toda a minha artéria aorta”. Foi de dentro que vieram as músicas que marcam agora o ritmo da sua carreira?
Sim, queria fazer uma metáfora, por causa dos “bpm” e de questões óbvias relacionadas com o coração. Escrevi isso da artéria aorta, porque já escrevi algumas letras para canções em discos passados, mas foram só pequenas amostras de canções que nem eram sobre mim, nem sobre a minha vida. Eram sobre personagens.
Liguei ao meu cardiologista e perguntei, como é que eu posso fazer esta metáfora? Eu sei que a artéria aorta é a maior, mas como é que posso fazer esta metáfora e falar de coisinhas mais pequenas, veias mais pequenas? Então, tem de ser vasos capilares, disse ele. Então as outras canções eram os vasos capilares e neste disco eu exponho a minha artéria aorta.
Depois de tudo o que passou com o transplante de coração, o nome deste disco “bpm”, a sigla de Batimentos Por Minuto, faz uma referência clara às questões cardíacas. São os ritmos da música e do coração a baterem juntos?
As canções que estão lá são os meus batimentos por minuto, são as minhas cicatrizes emocionais. Porque o “bpm”, os Batimentos Por Minuto, são o elemento que liga a música e a vida. São os batimentos por minuto do nosso coração que nos fazem respirar e andar e os batimentos por minuto da música que lhe dão pulso, ritmo e a fazem também viver.
Numa reflexão sobre o disco, achei que “bpm” era assim o elemento mais importante na vida e na música, e também porque “bpm” foi uma sigla que me acompanhou muito no hospital. Lembro-me de fazer exames, eletrocardiogramas e quando vinham os relatórios apareciam sempre lá os batimentos por minuto do meu coração. Eu sentia que era um elemento musical. De repente no meio daquela experiência hospitalar muito louca, era o único elemento musical que existia.
Ao todo apresenta 14 faixas em “bpm” que foram produzidas por Leo Aldrey e gravadas nos estúdios Le Manoir de Léon, em janeiro deste ano por Nelson Carvalho. Este é um disco nascido e criado em plena pandemia. O confinamento ajudou?
Na verdade, para mim, este confinamento funcionou muito bem. De outra forma nunca poderia concentrar-me tanto na composição deste novo álbum. Sou muito suscetível a estímulos exteriores na vida, como um simples almoço com um amigo, até ir ao cinema, ler, ir a concertos e, então, este estar forçado a estar sozinho em casa foi a única maneira que tive de me focar na composição e dedicar-me inteiramente ao disco. Nesse sentido foi um confinamento muito produtivo.
A experiência da composição tornou-se mais importante do que cantar?
Eu vim ao mundo para cantar, não tenho dúvida nenhuma. Compor é só uma consequência para cantar, é um meio para atingir o fim de cantar. Acho que sempre vai ser. O que eu gosto desde criança é cantar. É essa a minha missão.
Há nessa missão uma dimensão quase espiritual?
Uma missão espiritual e também profissional. Uma missão racional, porque não é por ser arte que não é uma coisa humana e objetiva. Sinto que as pessoas tendem a mistificar demasiado a música e a arte. Acho que é simplesmente a minha missão de artesão do som. O meu ofício é esse.
A gravação do disco foi, contudo, atrapalhada por várias circunstâncias. Diz que havia um “bicho” que se metia pelo meio, sempre que iam para os ensaios.
Houve vários obstáculos à realização deste disco. Quando perdemos o pianista, eu tive um pequenino ataque de pânico durante 10 minutos. Até que pensei no Abe Rábade, com quem eu tinha tocado. Tínhamos tido uma boa ligação musical que é uma coisa rara de se encontrar.
Tinha uma ligação forte com o Júlio Resende no palco, depois conheci este sueco, o Max Agnas que é muito irreverente no palco e eu gostava disso. E também senti essa ligação, mas de repente ele teve uma rutura de ligamentos e eu fiquei desesperado. Depois o Abe Rábade era também uma pessoa com quem tinha tocado e tinha sentido essa ligação, como nas relações amorosas. Não é fácil encontrar estas relações, mas quando se encontra somos agradecidos. Liguei-lhe e disse-lhe “estou à rasca, vem gravar o disco connosco por favor!” e ele veio e estou imensamente agradecido por ter entrado neste projeto com tanta dedicação.
O single “Sangue do Meu Sangue” é uma espécie de rosto do disco?
É uma espécie de cartão de visita para o disco e para a sonoridade do disco. Nós procuramos encontrar um novo som, uma nova cor sonora para a banda e eu senti que “Sangue do Meu Sangue” era uma boa transição entre os outros discos e este. Escrevi a letra num dia e mandei para o Leo e ele escreveu uma melodia muito rápido. Senti logo que aquela melodia tinha pertencido a vida inteira àquela letra.