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Hoje quando acordei, senti frio. Já estamos em outubro! Custa-me crer que o verão já passou, há quase sete meses que estou a trabalhar de casa.
O primeiro caso de contágio por Covid-19 em território belga surgiu em meados de fevereiro. Daí até à tomada de medidas sérias para abrandar o contágio ainda demorou quase um mês, já o número de casos diários era demasiado elevado para controlar com simples medidas de prevenção. Em 13 de março, o Governo belga avançou para um cenário de controlo e decretou o cancelamento de eventos, o fecho de algumas lojas em determinados dias e horas, a suspensão das aulas mas não o encerramento das escolas, e aconselhou a que se privilegiasse o trabalho remoto na medida do possível.
As medidas tomadas pelo Governo deixaram muita gente com um sabor agridoce na boca por causa da quantidade de exceções possíveis, mas é preciso perceber também o panorama político deste país. Em primeiro lugar, a Bélgica é um Estado Federal e há demasiadas questões de competência a ter em conta de cada vez que se tomam medidas. Em segundo lugar, no auge desta crise a Bélgica esteve a ser governada por um Governo de gestão – só recentemente o novo Governo foi nomeado, depois de batidos todos os recordes possíveis de tempo passado sem um Governo (mais de 600 dias!).
Poucos dias depois de terem sido anunciadas pelo Governo as medidas de contenção do vírus, as instituições europeias anunciaram as suas próprias medidas: todo o pessoal cuja presença nos edifícios não fosse essencial passaria a um regime de trabalho remoto. Em retrospetiva, este é mais um dos aspetos em que sou privilegiada. Num dia estava a trabalhar do escritório, no outro estava a trabalhar de casa. O trabalho de um tradutor é bastante flexível neste aspeto, salvo algumas exceções relacionadas com o acesso a determinados sistemas de tratamento de informações classificadas que exigem a presença no local. Durante esta crise, nunca deixei de trabalhar. Estou muito consciente de que houve muita gente neste país que não teve esta sorte nem este privilégio.
O meu marido começou a trabalhar nas instituições em pleno período de confinamento e trabalhou de casa durante as primeiras semanas até as medidas de confinamento mais restritivas serem levantadas. No entanto, ao contrário do que acontece comigo, as funções dele na gestão de um sistema informático restrito só podem ser desempenhadas a partir das instalações físicas e há já bastante tempo que ele vai para o escritório.
Antes disto tudo, eu era bastante aversa ao trabalho remoto. No início da minha carreira de tradutora fiz trabalho freelance durante algum tempo e trabalhei de casa. A minha dificuldade em desligar-me do trabalho fazia com que eu não tivesse disciplina com horários – não tinha horários para almoçar, não fazia pausas, continuava a trabalhar horas e horas (“vou só acabar isto”) – e era isto que eu não queria que me acontecesse. O facto de trabalhar com o meu marido durante algumas semanas ajudou bastante neste sentido, a “estrita supervisão” dos meus horários acabou por dar frutos e agora sou muito mais disciplinada e até gosto mais de estar em casa. Perco menos tempo nas deslocações de e para o trabalho, tenho mais tempo para fazer exercício, alimento-me melhor, só coisas boas!
Ainda assim, nem tudo foram rosas. Ao início foi bastante difícil lidar com problemas informáticos frequentes. De um dia para o outro, o nosso departamento de informática no Conselho teve de criar um sistema suficientemente bom, estável e funcional para ter quase três mil pessoas a trabalhar remotamente em simultâneo. O facto de lidarmos com informações sensíveis foi também um elemento a pesar nesta situação. Por outro lado, os colegas com crianças pequenas e/ou em idade escolar viram-se a braços com a necessidade de ter de cuidar delas, ajudá-las com as aulas online (foi implementado um sistema semelhante ao que se aplicou em Portugal) e, em simultâneo, trabalhar. Alem disso, os colegas mais velhos e com mais dificuldades em lidar com questões informáticas precisaram de algum tempo de adaptação à nova realidade digital. Claro que a produtividade de algumas pessoas nestas situações acabou por sofrer e a carga de trabalho acabou por ser desigual.
Felizmente, ao início o trabalho do Conselho abrandou com o cancelamento de reuniões e com isso diminuiu o trabalho de tradução. No entanto, a necessidade de tomar decisões e medidas de luta contra a Covid-19 fez com que o trabalho não diminuísse assim tanto, pelo que a carga acabou por se manter.
Ao longo deste tempo todo, o que mais custou foram as restrições de viagem. Cá em casa somos dois emigrantes de dois extremos do continente europeu, já que o meu marido é originário do norte da Grécia. Para nós, ver as nossas famílias é uma espécie de jogo de ténis, de um lado para o outro. Estivemos oito meses sem ver as nossas familias e ainda assim consegui-lo foi um jogo de cintura entre possíveis quarentenas, testes obrigatórios – à partida ou à chegada –, “zonas vermelhas”, voos cancelados, e outras peripécias.
Sinto-me na obrigação de dizer que Portugal tem as melhores medidas de higiene e prevenção que tenho visto – desinfeção de todas as superfícies, obrigatoriedade de equipamento de proteção nos estabelecimentos abertos ao público, etc., e que os portugueses (para quem “lá fora é que é bom”) me pareceram muito mais conscientes e cumpridores das medidas do que os povos daqui do norte – e de certeza muito mais do que aqui na Bélgica. As famosas exceções às medidas de confinamento foram mais a regra do que a exceção. Era possível sair de casa para ir ao supermercado, para ir fazer exercício, para ir passear o cão, para ir passear as crianças. À boa tradição do surrealismo belga, havia muito mais gente nas ruas, nos passeios, nos parques, por todo o lado, durante o período em que se encontravam em vigor as medidas mais restritivas de confinamento do que em dias normais.
*Sílvia Mira é tradutora no serviço de Tradução do Conselho da União Europeia e vive em Bruxelas com o seu marido grego, que também trabalhas para as instituições.