Saúde. Quem espera desespera (e, eventualmente, morre!!)
24-04-2019 - 22:08

As listas de espera são, também elas, uma doença crónica com uma epidemiologia abrangente que, se por um lado, se percebe que sejam inevitáveis na gestão dos cuidados num sistema de saúde tendencialmente gratuito, por outro, resvalam, na maioria das situações, para lá do eticamente aceitável.

Reduzir as listas de espera em saúde é algo que, obviamente, está no centro das preocupações de todos: decisores, profissionais de saúde, doentes e futuros doentes.

De facto, as listas de espera são, também elas, uma doença crónica com uma epidemiologia abrangente que, se por um lado, se percebe que sejam inevitáveis na gestão dos cuidados num sistema de saúde tendencialmente gratuito, por outro, resvalam, na maioria das situações, para lá do eticamente aceitável.

Independentemente da discussão sobre a matriz histórica que presidiu à instituição do SNS, com maior ou menor influência do modelo de Bismark ou de Beveridge, todos concordam que o objetivo principal de qualquer sistema/serviço de saúde de um país é o de garantir um acesso justo e equitativo aos cuidados de saúde em situações de doença. E, de facto, relativamente às listas de espera, é fácil perceber como temos falhado no cumprimento desse objetivo.

Tal como sublinhado no parecer 64\CNECV\2012[1] do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e reforçado no parecer 98/CNECV/2017[2] a definição de critérios para consultas e cirurgias, de disponibilidade geográfica para a realização das mesmas e os critérios de hierarquia e priorização nas listas de espera em cuidados de saúde têm, de deixar de estar “sabor de contingências múltiplas, por vezes unilaterais, dos clínicos ou de outros decisores hospitalares – para uma escolha e racionamento explícito e transparente, em diálogo com os cidadãos que devem ser informados, para que assim se mantenha intacta a confiança dos doentes nos profissionais de saúde e no SNS e maximize a responsabilidade dos decisores” (64\CNECV\2012).

“Os critérios e a fundamentação para os mesmos devem ser claros e publicitados de forma adequada e eficiente. Assim, é eticamente desejável que existam critérios justos e equitativos, transparentes e públicos relativamente à organização das listas de espera, bem como critérios de priorização nas listas de espera” (98/CNECV/2017) para o acesso a consultas e cirurgias válidos para todos os utentes.

As listas de espera em cuidados de saúde devem, assim, merecer uma análise atenta que permita gerir eticamente os tempos de espera; de facto, como mecanismo de racionamento de cuidados, só é aceitável se cumprir um conjunto de critérios que, tanto quanto é público, ou não existem ou são desconhecidos.

As listas de espera, tal como qualquer estratégia de racionamento em saúde só tem justificação ética enquanto permitir dar a cada um o que ele precisa, ou seja, não temos que dar tudo a todos porque cada doente é único e a igualdade não deve ser confundida com a equidade; mas de facto, olhando para os tempos máximos de resposta garantido (TMRG) definidos para consultas - (Muito Prioritário - 30 dias | Prioritário - 60 dias | Normal - 150 dias) e cirurgias (Muito Prioritário – Doença Oncológica e não Oncológica - 15 dias | Prioritário – Doença Oncológica - 45 dias | Prioritário – Doença não Oncológica - 60 dias | Normal – Doença Oncológica - 60 dias | Normal – Doença Não Oncológica - 180 dias) - no portal do Ministério da Saúde http://tempos.min-saude.pt/#/instituicoes percebemos, facilmente, que os tempos máximos definidos não cumprem os requisitos éticos mínimos.

Doentes muito prioritários, e por isso altamente vulneráveis física e psicologicamente, esperarem 30 dias por uma consulta e um doente oncológico prioritário esperar 45 dias por uma cirurgia é tão inaceitável que, realmente, se não estivessem em causa a vida das pessoas e, consequentemente, uma ameaça clara à dignidade de quem sofre, poderia parecer anedótico! Pior, além da fiabilidade destes números, que tem sido trazida à colação em notícias recentes, adicionando a isso o efeito, certamente significativo, das denominadas “greves cirúrgicas” (uma vez que os dados são de janeiro de 2019) e aquilo que é a situação concreta em cada unidade hospitalar (olhando de forma alectória para alguns cenários específicos) é muitíssimo mais grave.

A existência de listas de espera como um mecanismo de alocar serviços só pode ter fundamento eticamente justificável se for garantido que existem critérios definidos, que devem ser claros, transparentes, públicos, científica e eticamente justificáveis, no sentido de garantir que as listas de espera são geridas de forma adequada e que os doentes são priorizados de forma justa e equitativa e, além disso, que não existam situações de mortalidade ou morbilidade significativas relacionadas com esta espera.

Desta forma, e, evidentemente, sem trazer ao debate as mais recentes polémicas sobre o assunto que agudizam as questões éticas em apreço, podemos assumir:

1 - Que o SNS não cumpre o seu objetivo primário que é garantir a todos os cidadãos portugueses um acesso justo e equitativo aos cuidados de saúde;

2 - Que os critérios não são claros, transparentes, públicos e, consequentemente, é difícil avaliar se são cientificamente robustos.

3 - Que a forma como são geridas as prioridades nas listas de espera para consulta e cirurgia são, em Portugal, eticamente inaceitáveis.