Em entrevista à Renascença, o ex-ministro das Finanças de José Sócrates critica a opção do Governo de fazer uma redução seletiva do IRC, em vez do corte transversal que o ministro da Economia defendeu. A mesma crítica é feita à futura nova taxa sobre os lucros inesperados das energéticas ficando na expectativa que seja temporário e que "para o ano já não exista"
Esta proposta de Orçamento do Estado tem sido criticada por alguns setores como sendo excessivamente otimista, outros consideram que é excessivamente prudente e o primeiro-ministro diz que é equilibrado. Qual é a sua perceção?
Penso que este orçamento parece-me cauteloso e nesse sentido é um orçamento realista. Nós temos um contexto particularmente instável e com variáveis que não têm nada a ver diretamente com a economia, como é o caso da guerra na Ucrânia. Tem consequências económicas muito sérias.
Eu julgo que houve um objetivo que, aliás, é meritório neste orçamento, que foi a redução da dívida pública, que é absolutamente crucial. Nós viemos de um período de taxas de juro particularmente baixas em termos históricos anormalmente baixas e o financiamento do Estado pôde ser feita muitas vezes com taxas negativas, o que é raro e inusitado. E agora é necessário aproveitarmos para pagar a dívida pública.
É uma questão de credibilidade internacional...
De credibilidade e de evitar que os custos de financiamento do Estado subam muito e, portanto, por isso, penso que é de louvar esse objetivo.
O primeiro-ministro tem afastado um cenário de recessão e o cenário macroeconómico apresentado por este Orçamento do Estado, aliás, reflete isso. Vê alguma base que sustente esta posição?
Portugal é, até por razões geográficas, mas não só, dos países que está mais afastado das consequências diretas da guerra. Não dependemos do gás russo, não dependemos crucialmente de petróleo russo. A guerra está longe em termos geográficos, é positivo e, portanto, Portugal será dos países menos afetados diretamente pela guerra. É provável que uma quebra do crescimento de 6% para 1,3% não seja irrealista.
E a previsão de recessão na Alemanha não pode vir a influenciar os números em Portugal?
Certamente que influencia. É por isso que caímos de 6% de crescimento deste ano para 1,3%, de acordo com o orçamento. O Fundo Monetário Internacional também dá uma queda ainda mais acentuada do crescimento económico para Portugal. Mas, de qualquer forma, é discutível se é 1,3 ou 0,9%. Mas não espero uma recessão para Portugal no sentido de um crescimento negativo. Pode acontecer, não sabemos o que vai acontecer com a guerra.
Neste cenário de incerteza é difícil, neste momento, antecipar se vamos ter ou não um orçamento retificativo ou um orçamento suplementar?
Este orçamento é um orçamento cauteloso e é também um orçamento restritivo. Ou se quiser usar uma frase mais política é um orçamento claramente de austeridade. E, portanto, pode ser que a meio do ano se revele necessário haver um orçamento retificativo ou suplementar.
Não ficaria surpreendido. Até, porque como digo, há uma grande incerteza no contexto internacional que estamos a viver.
O primeiro-ministro tem recusado que exista perda de poder de compra para as diversas faixas. Existe ou não existe essa perda de poder de compra?
Os escalões do IRS vão ser atualizados à volta de 4%. Como a inflação este ano vai ser de 7% ou 8%, significa que de facto, em termos reais vai haver um agravamento do IRS, porque o ajustamento dos escalões não compensa sequer a inflação deste ano, quanto mais a do próximo ano. Portanto, este é um orçamento restritivo ou de austeridade, como lhe quiser chamar.
"(...) em termos reais vai haver um agravamento do IRS, porque o ajustamento dos escalões não compensa sequer a inflação deste ano (...)"
Aliás, se o orçamento fosse, digamos, neutro, com o PIB a crescer 1,3% nós teríamos um défice a passar de 1,9% de queda deste ano, para 2,5 % ou coisa que o valha. A diferença entre os 2,5% e 0,9% é austeridade.
Tem sido questionado que o Governo não opte, por exemplo, pela descida do IVA dos bens alimentares. Era viável termos um IVA próximo de zero para ajudar a compor o cabaz alimentar das famílias?
Uma das críticas que se pode fazer a este orçamento é ser um bocadinho um orçamento de pensos rápidos, ou seja, há um probleminha e faz-se um pequeno ajustamento.
Há uma subida da gasolina desce-se um bocadinho o ISP. Isto não é uma estratégia, é apenas pensos rápidos. Estes remendos não penso que tenham grande interesse.
Não é preciso ser da Iniciativa Liberal para se defender e pensar que é absolutamente necessário repensar a tributação em Portugal. Os impostos têm um peso avassalador e eu julgo que o mais grave é a tributação direta, ou seja, o IRS e o IRC.
Em ambos os casos nós temos taxas que são absolutamente incomportáveis para a economia. O IRC tem uma taxa que é a mais alta da OCDE, é absolutamente crucial, que isso se altere com um programa plurianual. E no IRS rapidamente chegamos a taxas marginais de 53%, que é incomportável para uma economia como a nossa.
Em relação ao IRC, houve uma oportunidade agora no acordo de rendimentos para que houvesse uma baixa dos 21% para os 19%. Isso não foi possível. Acredita que para a frente ou no próximo Orçamento do Estado 2024, essa redução do IRC possa de facto acontecer?
Não faço ideia. O que é importante é não baixar o IRC apenas para determinadas categorias. Se a empresa fizer isto a gente tira-lhe dois pontos, se a empresa tirar a gente tira mais aquilo. Não pode ser assim, deve ser uma baixa geral, transversal como queria o ministro da economia.
Não é preciso ser da Iniciativa Liberal para se defender e pensar que é absolutamente necessário repensar a tributação em Portugal
Quando se quer mexer em tributação deve ser assim. Não arranjar exceçõezinhas e mexer no funcionamento das empresas. Primeiro, porque há os custos administrativos do próprio Estado e, segundo, o que aparece nas estatísticas é Portugal com a taxa mais alta da OCDE de IRC.
Essas exceçõezinhas vão distorcer a forma como os gestores gerem as empresas e na sua empresa. Isso é competência deles, não é uma competência do Estado. O Estado não tem que estar a dizer como é que as empresas vão ser geridas e interferir. Isso cria distorções e cria problemas aos empresários.
Em relação ao acordo de rendimentos que foi conseguido com os parceiros sociais, considera que é viável até ao final da legislatura as metas de aumentos salariais? O acordo vai ter de ser alterado substancialmente?
Não, penso que não. Uma subida salarial de 5% com a inflação a 7% ou 8% ou 9%, não penso que seja um acordo irrealista e, portanto, não vejo nada que me choque. Provavelmente, sem haver acordo, a evolução não seria muito diferente.
Vê alguma eficácia na taxa aos lucros inesperados das energéticas?
Nós já temos um imposto especial, a CESE, e, portanto, eu gostava de saber como é que isso se vai articular, porque é um imposto excecional e discriminatório dessas empresas. Mais uma vez, como acabei de dizer há pouco, acho pouco interessante impostos que são discriminatórios, os impostos devem ser gerais e devem ser iguais para todos.
Estamos num período particularmente difícil e penso que, provavelmente, a perceção pública e temporária destes grandes lucros das empresas petrolíferas possa ser uma forma de alguma justiça tributária haver essa tributação. Mas espero bem que isto seja temporário e não seja para repetir.
Que seja algo apenas para este período de incerteza?
Exactamente. Espero que para o ano já não exista. Quer dizer, isto é para durar um ano e acabou-se.
E uma coisa combinada entre a nova taxa e a CESE. Faria sentido?
Teria sentido repensar toda essa tributação excecional sobre empresas petrolíferas, isso sem dúvida.