Brasil: 200 Anos
07-09-2022 - 06:31

Contrariando a fachada retórica da amizade entre países irmãos, a verdade é que no Brasil subsiste muito desconhecimento ou muito ressentimento em relação a Portugal, como se o antigo colonizador ainda fosse responsável, hoje, pelos desmandos internos da maior nação latino-americana

Celebra-se hoje o bicentenário de um dos acontecimentos - na verdade, o culminar de um processo - mais importantes da história de Portugal, do Atlântico e da América do Sul: a declaração unilateral de independência do Brasil, pelo mítico «Grito do Ipiranga», pronunciado por D. Pedro, a 7 de setembro de 1822.

O processo independentista, que liquidou o império atlântico luso-brasileiro, começara antes, pelo menos desde que, em 1808, aportada ao Rio de Janeiro para escapar à captura napoleónica, a família real portuguesa ali estabeleceu a capital do reino, na sua “maior e melhor parte”, invertendo os termos da tradicional relação geográfica, pela transformação da colónia americana em metrópole e da metrópole europeia numa nesga de terra pilhada pelos franceses e depois “colonizada” pelos ingleses. A crescente americanização de D. João conduziu, em 1815, à elevação do Brasil à categoria de Reino, cimentando a importância do seu imenso e prometedor território na malha imperial lusa e vincando ainda mais a orfandade do Portugal europeu nas vésperas da revolução liberal de 1820. Forjado em grande parte para salvar o Brasil português, o regime vintista viria a soçobrar, em 1823, não só, mas também, por ter fracassado na recentralização administrativa e política unitária a partir de Lisboa. O divórcio entre as Cortes Constituintes portuguesas e o príncipe D. Pedro culminou em 1822 quando, desautorizado e humilhado, o herdeiro do trono português decidiu erguer a espada pela «Independência ou Morte».

O corpo de D. Pedro repousa nas margens do Rio Ipiranga desde 1972, quando o Estado Novo de Marcelo Caetano aceitou oferecê-lo à então vigente Ditadura Militar brasileira. Para o bicentenário, Portugal emprestou o coração do caudilho da independência, em depósito perpétuo na igreja da Lapa, no Porto. Demasiado presa da tribalização que afeta a campanha para as eleições presidenciais de outubro, a opinião pública do Brasil está distante da efeméride, debatendo apenas para que serve o voyeurismo necrológico em torno da relíquia do fundador. Enquanto Bolsonaro e as direitas querem apropriar-se politicamente dela para a encenação de uma suposta grandeza dos atuais detentores do poder, Lula da Silva e as esquerdas desprezam a visita póstuma, porque D. Pedro significa o antigo colonizador português monárquico.

É pena que não se veja mais longe. D. Pedro foi um verdadeiro Washington latino, um libertador diferente dos caudilhos revolucionários republicanos da América espanhola. Foram a sua legitimidade real e a sua determinação que produziram o milagre da unidade do Brasil, impedindo a sua pulverização caótica depois de 1822; e mesmo tendo abdicado no Rio de Janeiro, regressando à Europa e a Portugal (onde sentou a filha, D. Maria II, no trono liberal, dando à sua pátria-berço um novo futuro), foi ele quem criou o quadro institucional, político ou socioeconómico onde depois medraria o chamado “segundo reinado” do seu filho, o imperador D. Pedro II.

Contrariando a fachada retórica da amizade entre países irmãos, a verdade é que no Brasil subsiste muito desconhecimento ou muito ressentimento em relação a Portugal, como se o antigo colonizador ainda fosse responsável, hoje, pelos desmandos internos da maior nação latino-americana. Se, ao menos, a memória de D. Pedro e do feito de 1822, ou seja, do que o imperador do Brasil e rei de Portugal realizou nos dois lados do Atlântico, pudesse inspirar o presente e o futuro, a peregrinação do seu coração talvez valesse a pena. Caso contrário, servirá apenas para ritual simbólico, o que é muito pouco para o imenso que 1822 significou na contemporaneidade lusitana bi-hemisférica.