O Aeroporto de Lisboa parece ter entrado definitivamente na rota do tráfico de menores e há um esquema que está a ser particularmente bem-sucedido. No último ano e meio, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) perdeu o rasto a 66 menores, que chegaram sozinhos e pediram asilo.
Enquanto esperam pela resposta, os jovens ficam em regime aberto, e acabam por desaparecer.
Mário Varela, inspetor da Unidade Anti-Tráfico de Pessoas do SEF, fala de um esquema e não tem dúvidas de que em causa estão crimes de tráfico de seres humanos. “As pessoas destroem os seus próprios documentos, viajam sozinhas ou controladas por alguém dentro do voo e uma vez num Estado-membro solicitam asilo. Mais cedo ou mais tarde o seu processo será decidido, mas enquanto esperam estão, na maior parte das vezes, em regime aberto e desaparecem”.
Salvo raras exceções, em causa está o tráfico de seres humanos, havendo duas situações distintas. Por um lado, os menores que chegam acompanhados por um ou mais adultos, com documentação falsa ou falsificada, simulando uma banal viagem familiar, por exemplo, entre pai e filhos.
Quando este esquema é detetado, revelando que a criança está afinal a ser traficada, o SEF detém o adulto e, após validação de um tribunal, o menor passa a estar ao cuidado da Segurança Social, sendo colocado numa casa abrigo.
A outra situação diz respeito aos jovens – crianças, adolescentes ou até adultos que dizem ser menores – que chegam sozinhos, sem qualquer documentação, e que pedem asilo a Portugal.
Aqui o enquadramento é diferente, desde logo porque ao pedirem asilo não são tratados como potenciais vítimas de tráfico e, por isso, não têm cuidados tão especiais de proteção. Ficam no Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária do Aeroporto por um prazo máximo de sete dias, e depois, continuam à espera da resposta ao pedido de asilo num dos centros de acolhimento do Conselho Português para os Refugiados.
Essa mudança, embora comunicada ao Tribunal de Família e Menores, implica a passagem para regime aberto e é aqui que está o problema.
O inspetor explica que a forma como se apresentam às autoridades nacionais, determina o que irá acontecer a estes jovens. “Chegam ao Aeroporto de Lisboa, mas nós não sabemos a idade e só temos certezas depois de serem feitos exames e perícias médicas, e dizem: ‘Sou menor, não tenho documentos e não quero falar sobre isso. Ou sobre isso tenho a dizer que perdi os documentos. Ou sobre isso tenho a dizer que no país de onde venho me roubaram os documentos’. Estas crianças que ser tratadas como menores até se esclarecer a situação. Onde é que está o problema? É que muito provavelmente quando a situação se esclarecer, já estas pessoas desapareceram”.
Segundo Mário Varela, os indícios estão por todo o lado, a começar nos bilhetes com que viajam dando conta de rotas longas em África sem sentido. “Posso dar um exemplo. Congo-Costa do Marfim, Costa do Marfim-Dakar, Dakar-Lisboa com voo a seguir para Lyon. Outra rota. Luanda-Lisboa em trânsito com destino a Cabo Verde, Cabo Verde-Lisboa com destino a Luanda, e uma vez em Lisboa a viagem não prossegue para Cabo Verde e os documentos desaparecem todos”, enumera.
Os dados do SEF, tal como os da Europol e os da Frontex dizem que a maior parte destes jovens estão de facto a ser traficados e que têm como destino a exploração sexual.
Números contraditórios dos desaparecidos
O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras garante que perde o rasto a todos os jovens que entram em regime aberto, embora os dados do Centro Português para os Refugiados (CPR) revelem outra coisa.
Sem especificar em concreto quantos estavam à espera de resposta a pedidos de asilo, o CPR diz que, pelo menos, enquanto estiveram à sua guarda, em 2017 só desapareceram oito dos 41 jovens acolhidos; já em 2018 desapareceram 16 dos 61 que para ali foram enviados pelo SEF.
Desse total de crianças acolhidas nos dois últimos anos, esta organização não-governamental diz ter sinalizado apenas 16 como sendo potenciais vítimas de tráfico e deu conhecimento ao Observatório do Tráfico de Seres Humanos.
Desde janeiro deste ano, o Centro de Acolhimento da Criança Refugiada do CPR recebeu 59 menores, dos quais perdeu o paradeiro a 14: sete rapazes e sete raparigas.
Mesmo admitindo que o contacto se possa perder mais tarde, o Conselho adverte, no entanto, que o tráfico pode não ser a explicação para todos os casos, porque alguns podem simplesmente estar relacionados com o reagrupamento familiar noutros países.
O ano passado, alertado por notícias que diziam que o SEF detinha crianças no aeroporto, o ministro da Administração Interna deu ordem para que o prazo máximo de permanência de menores no aeroporto passasse de 60 para sete dias, mas isso não resolveu esta questão. As crianças estão sem dúvida em melhores condições, mas desaparecem na mesma e até mais depressa.
Existe uma solução?
Oficialmente, o SEF não tem uma sugestão para acabar com este problema, mas há ideias: Ou se passa a assumir à partida que podem ser casos de tráfico, e mesmo que peçam asilo os menores ficam logo sujeitos a proteção especial; ou são criadas condições para um acolhimento mais longo destes menores num regime controlado ou mesmo fechado, como já acontece no Norte da Europa.
O inspetor Mário Varela defende que alguma coisa tem que ser feita. “O SEF tem conhecimento que o Centro de Instalação Temporária junto do Aeroporto de Lisboa não tem condições condignas para que uma criança ali permaneça por um tempo mais alargado. Portanto, compreendemos que a solução passe por tirar a criança do centro. Mas, se depois me pergunta se o ideal é colocar a criança num sítio em que fica em regime aberto? Os factos falam por si. Não lhe posso dizer que sim, porque até agora perdemos o rasto a todos esses requerentes de asilo”.
Tendo por base os dados do SEF, Portugal parece ter entrado em definitivo na rota do tráfico de menores.
Dos 136 menores que o ano passado chegaram sozinhos, 36 pediram asilo e desapareceram. Já na primeira metade deste ano, isso já aconteceu em 30 situações, ou seja, quase tantas como em todo o ano passado.