Mário Centeno já era um ministro a prazo desde que deixou de ser o “número dois” do Governo e que a crise económico/sanitária começou. Ontem foi-lhe reafirmado que era essencial a sua presença no Governo, pelo menos, até que seja apresentado o Orçamento Suplementar e o Programa de Estabilidade a apresentar em junho, mas depois de ser tanto tempo “Ronaldo das Finanças” tudo já parece uma despromoção. O pior é que se houve episódio em que a razão estava do lado de Centeno foi seguramente este.
Não havia necessidade. A encenação de uma micro-crise política esta quarta-feira não fez mais do que fragilizar Centeno para a reunião do Eurogrupo de amanhã e aumentar, ainda mais, a distância entre um povo que começa a dar-se conta de uma crise económica brutal a somar à crise sanitária, e de uma classe política que depois de quatro anos de relativo sucesso económico não parece preparada para gerir o novo normal de uma súbita recessão, nem sequer preocupada em substituir a tagarelice política pela liderança que o momento impõe.
Nas vésperas de um novo Eurogrupo, depois da Alemanha lhe ter retirado o apoio para um segundo mandato, o ministro português dispensava uma nova fragilização interna (os mercados são globais e sabem quando um ministro das Finanças fica de repente “por um fio” no seu próprio país).
Os políticos portugueses podiam ter escolhido melhor o dia para encenar a crise e fazer-nos perder a Todos. A começar no povo, sem paciência para continuar a salvar bancos quando não há dinheiro para o essencial.
Senão vejamos:
1 - Mário Centeno
Começou bem o dia desmascarando a estratégia de Costa e não deixando colar a ideia de que o primeiro-ministro tinha tido “o azar” de ser enganado pelo ministro das Finanças. Centeno readmitiu que a atualização da ficha de informação que Costa usou durante o debate quinzenal para orientar a resposta sobre o tema estava desactualizada, assumiu essa culpa, mas ficou por aí.
Depois contra-atacou: o Ministério das Finanças não agiu à revelia do primeiro-ministro. Primeiro não podia (o empréstimo teve de ser autorizado pelo Conselho de Ministros e, logo aí, Costa teve de saber), depois, a data limite da transferência era clara: 6 de maio. Ou seja, o próprio dia do debate quinzenal.
Por último, e mais importante, a verba para o Novo Banco estava prevista já no Orçamento (600 milhões no mínimo!) e o contrato de venda fixava um máximo anual de 850 milhões, e o Orçamento aprovado incluía também essa folga.
Por último, o ministro fez questão de voltar a frisar que a auditoria imposta pelo próprio Ministério das Finanças, e a pedido do Presidente da República, na sequência do excesso de prejuízos de 2018, nunca poderia violar o contrato que concedia aos americanos da Lone Stars a possibilidade de recorrer a transferências do Fundo de Resolução até 3,9 mil milhões num prazo de oito anos (até 2025). Isto, caso se provasse que os ativos tóxicos estavam sub-avaliados na altura da venda dos 75% do banco ao Fundo comprador. Como, se sabia que muito provavelmente estavam.
Centeno fez questão de salientar que a lei 15 de 2019 não implicava nenhuma condicionalidade dos montantes acordados, nem se podia utilizar para esse fim. No fundo pretendia-se apenas apurar se a estratégia dos americanos era conseguir limpar o banco à custa dos contribuintes, desencantando a uma velocidade assustadora todo o tipo de créditos malparados, levando-os quanto antes, todos a prejuízos. Daí a nova auditoria, encomendada à Delloite, servia para calar os protestos da opinião pública sendo tão inútil que tem por base avaliar 18 anos de gestão dos quais apenas interessa o último.
Centeno exagerou mesmo “um bocadinho” quando disse que as promessas de Costa eram “irresponsáveis” porque nunca poderia usar a auditoria, prevista para maio, como argumento para retardar a transferência contratualmente inadiável e cujo prazo limite para pagamento era 6 de maio. Isso, segundo Centeno, juntaria à pandemia uma crise bancária. Toda a razão.
Percebe-se, também, que Centeno tivesse querido encenar por último o “clímax” da crise.
Marcelo puxou-lhe o tapete, na esperança que Costa também se desequilibrasse num mundo de contradições denunciadas pelo próprio ministro das Finanças.
Mariana Mortágua, que desde o início da “Geringonça” sempre quis candidatar-se ao lugar, falou de “demissão em direto” perante o choque de versões com Costa. E, Rui Rio saiu da quarentena para exigir de uma forma mais ou menos “fofinha” a sua cabeça.
Como já perdeu a hipótese de rumar ao segundo mandato no Eurogrupo e estão em crescendo as vozes que consideram um escândalo que rume ao Banco de Portugal em voo direto das Finanças, Centeno fez por último constar que se ia demitir e rumou a São Bento.
Não ganhou a guerra, mas venceu a batalha. Saiu na mesma, a prazo, entre sorrisos cúmplices com Costa, mas com fama de ter “concedido” à causa pública governamental mais dois meses da sua vida profissional. Depois, como já se sabia deixa-se de maçadas e leva no currículo todas as conquistas (incluindo o único excedente da democracia) com a grande vantagem de não ter de lidar com a crise.
Resultado: Ganhou a Marcelo que, esta quinta-feira de manhã, lá teve de fazer uma notinha a explicar que nunca pretendeu imiscuir-se nas questões internas do Governo, nem tinha pedido a sua cabeça, e embora mantivesse que “politicamente” uma auditoria sempre legitimaria melhor a transferência, a sua actuação não foi um puxão de orelhas, mas um equívoco.
Ganhou a Costa forçado a reconhecer que não só lhe tinha sido leal como o Governo continuava a precisar mais dele do que de Siza Vieira. E no entretanto empatou os comentadores até perto da meia noite, empenhados na maioria a descartá-lo rapidamente. Pelo meio, colocou Rio mais uma vez fora de jogo.
2 - Oposição
Rui Rio: Entrou tarde em todos os jogos e não ganhou nenhum, o que aliás não o deve preocupar. Resistiu tanto a apoiar Marcelo que agora só pode ir atrás de Costa. Se tinha ideia de apresentar alternativas, agora são inúteis. Pediu a cabeça de Centeno tarde demais e quando a procissão já estava a sair do adro em direção a São Bento, de onde Centeno saiu reconfirmado como ministro. Esteve quase a perder por falta de comparência, mas acabou com falta de atraso.
Bloco de Esquerda: Fez bem em insistir, porque Costa não pode achar-se inimputável perante o Parlamento. Embora, sabendo que uma crise bancária a somar à pandemia era simples loucura e nada havia a fazer em relação ao novo banco. Praticou o mini-terrorismo em que Mariana Mortágua é perita, “acusando Mourinho Félix” de estar a demitir-se com Centeno em direto”, mas a permanência de Centeno estragou-lhe o dia que tinha corrido menos mal.
3 - António Costa
Quando percebeu que Centeno estava pronto a puxar-lhe o tapete colocando a descoberto uma versão totalmente inverosímil, desviou para canto e lançou, em plena visita à Autoeuropa, a recandidatura de Marcelo, oferecendo-lhe o seu apoio, dando-o como antecipadamente vencedor, sem sequer margem para dúvidas.
De uma cajadada tentou mudar a agenda e retirar Ana Gomes de jogo, como ela aliás já tinha previsto. Esqueceu-se que os tempos não são favoráveis à pequena política.
Marcelo, fiel a si mesmo, não enjeitou o apoio, louvou o excelente trabalho de equipa com o Governo “para continuar” e deu-lhe um inesperado elogio que, ao retirar margem a Centeno, voltou a repor o Novo Banco no topo da actualidade e se transformou num “piparote” ao primeiro-ministro. O pior é que os media, focados em Centeno, leram nas palavras do Presidente um puxão de orelhas ao ministro.
Nesta questão, disse o Presidente, não era irrelevante o timing da auditoria. Era, como António Costa disse no Parlamento, “politicamente importante” que a transferência só ocorresse depois de conhecido o resultado. Costa teve de tomar a declaração como elogio e enfrentar o embate. Se o prazo legal acabava naquele dia e a auditoria não tinha chegado, restava explicar o facto, não prometer o impossível.
Até porque Costa tinha garantido, num debate quinzenal em final de abril (quando a auditoria da Delloite ao Novo Banco encomendada o ano passado estava ainda prevista para início de maio) que não seguiria dinheiro para o Novo Banco, sem que esta fosse do conhecimento dos portugueses. Na altura a promessa era possível e, mesmo que fosse inútil, era “politicamente diferente”, como lembrou Marcelo.
No debate seguinte repetiu o mesmo para descansar o Bloco, mas foi aparentemente surpreendido pela transferência feita no dia anterior e achou, erradamente, que bastava pedir desculpas ao Bloco e atirar as culpas para Centeno para se livrar do caso. Não livrou.
É crível que não soubesse que a data expirava naquele dia, mas é inadmissível que não soubesse que a transferência era inevitável.
Pelo meio S. Bento ainda quis vender a tese de que havia uma confusão de “auditorias”, coisa que a nota de ontem à noite voltava a referir. Mas a desculpa não colou. A transferência foi precedida pela auditoria do auditor externo do Banco, a Ernest&Young, e alvo dos pareceres, do BCE e da Comissão de Acompanhamento do Fundo de Resolução). A pergunta não era sobre elas e a resposta também não.
Para não ser desautorizado pelo ministro lá teve de o receber à noite e fazer um comunicado a dizer que a reunião era para preparar o Eurogrupo e o Orçamento Suplementar, mas de caminho a questão da falha de informação (tese de Centeno) estava esclarecida e a confiança em Centeno era pessoal e politicamente reafirmada.
Resumindo: Costa marcou apenas um golo a Rui Rio na questão Marcelo, mas sofreu golos de Centeno e do próprio Presidente.
Acabou por enfrentar a falta de paciência de Centeno que o fez, para cúmulo, perder horas de sono e a ter de lhe dar razão.
4 - Marcelo
Ganharia o dia enquanto comentador, mas foi forçado a ligar a Centeno esta manhã evitando mais equívocos logo que se deu conta de que a visão presidencial foi demasiado cúmplice com Costa.
Não precisou de ser candidato para já ter 70% garantido. Arranjou um sarilho ao Governo e à oposição, que irritou duplamente ao salientar como a vida lhe corre bem com Costa. Pelo caminho deu azo à percepção de que estava a puxar mais uma vez as orelhas ao ministro, que já desde os tempos do caso CGD (com a farsa de nomeação falhada de António Rodrigues) lhe tem merecido reparos.
Como Presidente pode ter arriscado afastar ainda mais a direita da direita, empurrando-a para os braços de Ventura, o que também não é bom para ele. Tão boa relação com o PS pode ser ainda mais tóxica do que a fria relação com Rui Rio.
Resumindo: empatou o jogo político mais um dia e teve que voltar a terreno para o remarcar.
E os portugueses?
Só perceberam que o Estado entrou com mais 850 milhões para salvar um banco detido por um fundo “abutre” norte-americano.
Como se isto não bastasse passaram o dia a lembrar-lhe que o buraco do Novo Banco não vai ficar por aqui. No momento em que não há dinheiro para nada e alguns já tem fome. Mostraram-lhe a política, no seu pior, exactamente quando precisam de confiança , liderança e grandeza. Não havia necessidade.