O pretexto foi a apresentação do novo candidato a secretário do Trabalho, mas esse foi um assunto que ocupou apenas um dos 75 minutos que a conferência de imprensa de Donald Trump durou esta quinta-feira.
O presidente acordou com a ideia fixa de vir a público contra-atacar os “média desonestos” e dar a sua versão de como tem corrido o seu mandato. O resultado foi uma conferência de imprensa surrealista no tom e na substância em que Trump se enredou em contradições, mentiras, truques e distorções de vários tipos.
No seu habitual discurso errático que nunca aprofunda nenhum ponto e saltita caoticamente entre temas, Trump passou 90% do tempo a culpar os média de tudo quanto há de negativo no país e no mundo, chegando ao ponto de os responsabilizar antecipadamente pelo eventual não entendimento com a Rússia.
Segundo ele, Putin olhará para aquilo que os média relatam sobre o que se passa na América e vai certamente pensar que Trump não será capaz de fazer um bom acordo com ele porque o ambiente político não o permite. E esse ambiente é da responsabilidade da imprensa que passa a vida a transmitir “notícias falsas” e não quer que ele se entenda com o líder russo.
As “notícias falsas” dos “média desonestos” estão “fora de controlo”, segundo Trump, e isso só prova que o sistema está viciado, porque propaga tais mentiras em vez de falar do “trabalho tremendo” que a sua administração tem feito até agora. Dá uma imagem de caos quando afinal a sua administração funciona como uma “máquina afinada”, graças ao “fantástico grupo” que o rodeia.
“Nunca houve até hoje um presidente que tenha feito tanto em tão pouco tempo”, garantiu Trump, numa das suas habituais tiradas auto-elogiosas.
É do “fantástico grupo” a que o presidente se refere que têm vindo muitas das fugas de informação que dão conta do caos que grassa na administração, incluindo inúmeras declarações públicas dos seus assessores que entram em contradição entre si ou com as afirmações do próprio Trump. Um caos que já nem destacados republicanos se inibem de reconhecer em público.
Não vejo, mas vejo
Mas a caracterização feita do ambiente político criado em Washington e a responsabilização antecipada dos média por um eventual falhanço no entendimento com a Rússia é afinal um manifesto contra a forma como funciona a democracia, contra um sistema de freios e contrapesos, contra a função de vigilância do poder consagrada na Constituição que a imprensa desempenha, que Trump sente hoje como um incómodo irritante.
E percebeu-se que a maior irritação presidencial vem do facto de muitas dessas notícias “falsas” terem origem em fugas de informação verdadeiras. Interrogado sobre como podem fugas de informação verdadeiras dar origem a notícias falsas, disse que o problema era do envolvimento nos assuntos. Ele enquanto presidente estava envolvido nos assuntos e sabia que a notícia era falsa, enquanto o público não tinha meios de distinguir entre aquilo que é verdadeiro ou não.
Pouco depois, porém, garantiu que as audiências dos “média desonestos” estavam a descer e isso significava que o público já não acreditava neles e sabia distinguir entre o trigo e o joio…
Para Trump, claro, o trigo é a Fox News, “a mais honesta”, disse, e o joio é a CNN, cujo tom é de “ódio” e cujos painéis de comentadores são parciais. Referiu expressamente um dos programas nocturnos da CNN como exemplo do que tinha dito. Isto pouco depois de garantir que tinha deixado de ver os “média desonestos”…
A verdade, relatada por fontes internas da Casa Branca, é que Trump vive obcecado pelos média, especialmente pelos canais de notícias e é um consumidor ávido dos mesmos. A multiplicação de notícias sobre a confusão que reina na sua equipa, as fugas de informação, as jogadas de bastidores entre assessores que se invejam mutuamente e disputam a influência junto do presidente, a “queda” de dois membros de uma administração que tem apenas 28 dias de vida, levaram-no a vir a público para tentar contrariar essa imagem negativa.
“Herdei uma confusão”
O resultado foi mais um psicodrama do que um prestar de esclarecimentos. Já vimos várias contradições, vejamos agora algumas falsidades proferidas por Trump.
“Herdei uma confusão no país”, disse. Não corresponde à verdade sob qualquer prisma sério de análise. Todos os indicadores dos EUA são hoje bastante melhores do que eram quando Obama tomou posse, da economia à taxa de crime.
“O ISIS [Estado Islâmico] espalhou-se como um cancro e está hoje por toda a parte”, disse. Nenhum especialista em contra-terrorismo corrobora a afirmação. O grupo terrorista há meses que está em recuo, perdeu várias fortalezas na Síria e no Iraque, e há mesmo quem garanta que está em ruptura, podendo já não oferecer resistência organizada por muito mais tempo.
“A proibição da entrada dos imigrantes no país correu bem e de forma suave, o problema foram os tribunais”, disse. Antes dos tribunais intervirem no caso estava instalado o caos nos aeroportos com pessoas que tinham ”green card” ou vistos legais impedidas de entrar no país. Da Casa Branca saíram duas interpretações contraditórias da ordem executiva do presidente. E só 36 horas depois da publicação do decreto é que ficou claro que ele não abrangia os possuidores de “green card”. Centenas de pessoas foram impedidas de voar e outras centenas ficaram retidas muitas horas nos aeroportos de chegada por causa da confusão lançada pela ordem executiva. E tudo antes de os tribunais se pronunciarem.
“O Wall Street Journal publicou hoje uma notícia falsa e nem sequer me ouviu”, disse. A notícia a que Trump se refere conta que a comunidade de “intelligence” começa a conter-se nas informações que veicula ao presidente por não confiar no destino dessas informações, num sinal de desconfiança gravíssimo entre as agências de espionagem e a Casa Branca. Mas a notícia diz logo num dos primeiros parágrafos que a Casa Branca desmentiu o seu teor.
“Tive a maior vitória no Colégio Eleitoral desde Ronald Reagan”, disse. Foi mais um daqueles auto-elogios que Trump faz frequentemente venham ou não a propósito. Acontece que não é verdade. Um repórter perguntou-lhe como poderia o povo americano atribuir-lhe credibilidade se ele acabava de dizer uma falsidade quando acusava os média de dizer falsidades. Ainda a pergunta ia no ar, com o repórter a citar os números da vitória de Obama, já Trump dizia que se referira apenas a republicanos. Mas depois quando os números de Bush (pai) e Bush (filho) também o desmentiam, Trump desculpou-se com aquilo que os assessores lhe tinham escrito nas notas. “Era o que tinha aqui escrito”, justificou.
Flynn fez o que devia
Um dos pontos inevitáveis da conferência de imprensa foi a questão da Rússia e da demissão do conselheiro de Segurança Nacional, Michael Flynn. Mais uma vez, Trump elogiou Flynn, dizendo que ele estava a fazer bem o seu trabalho e que uma das funções do conselheiro de segurança é falar com os seus pares nos outros países, incluindo com os russos. Reduziu a sua demissão à questão de ter omitido informação ao vice-presidente quanto aos contactos com os russos.
Quanto à questão mais delicada de vários dos seus assessores terem tido múltiplos contactos com responsáveis russos durante a campanha eleitoral, Trump disse que tais notícias eram um “ardil”, um “estratagema”. Perante a insistência de vários jornalistas no tema, o presidente acabou por dizer que “ninguém de que ele tenha tido conhecimento” tivera tais contactos.
Reiterou que não tinha nada a ver com a Rússia, não tinha negócios com a Rússia, nem empréstimos contraídos na Rússia. Mas voltou a exprimir a sua vontade de ter uma boa relação com Putin. O que poderá ser prejudicado (ou mesmo impedido) pelos “média desonestos” e as suas “notícias falsas”.
Nos poucos momentos em que não atacou os média, Trump aproveitou para dizer que na próxima semana avançará com nova ordem executiva sobre os imigrantes e refugiados (que estava prometida para esta semana) e que em Março haverá um plano para substituir o Obamacare.
Foi nos poucos momentos em que adoptou um tom moderado, em contraste com a adrenalina, ressentimento, agressividade ou sarcasmo que pôs em quase todas as respostas sobre os média – a sua obsessão.
A observação mais certeira para caracterizar a conferência de imprensa veio de um senador republicano que a enviou ao jornalista John King, da CNN: “Estas coisas fazem-se num terapeuta, não na televisão em directo”.