O professor decano da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Eduardo Paz Ferreira considera, em entrevista à Renascença, que "não se pode esperar que, sem haver uma alteração global, se esteja a atingir uma sociedade mais justa, só porque uns conseguiram sobreviver a todas as dificuldades".
Em antecipação de uma conferência com o filósofo norte-americano Michael J. Sandel, autor do livro "A Tirania do Mérito - O Que Aconteceu ao Bem Comum?", que se realiza esta quinta-feira, na Fundação Calouste Gulbenkian, Paz Ferreira defende a necessidade de melhorar os apoios ao acesso ao Ensino Superior de forma a garantir uma maior igualdade de oportunidades.
O também presidente do Instituto de Direito Económico Financeiro e Fiscal alerta que a extrema-direita aproveita-se de quem é deixado para trás pela meritocracia.
O que é a “Tirania do Mérito”?
Algumas pessoas olham com alguma estranheza para o título, porque, numa leitura superficial, pode dizer-se que o mérito significa que não são beneficiados os que não têm mérito. Mas o que o autor quer demonstrar, e demonstra bem do meu ponto de vista, é que realmente não se pode falar de mérito quando continua a haver desigualdades sociais e quando continuam pontos de partida muito diferentes de níveis de riqueza.
As diferenças permitem, por exemplo, a facilidade do acesso de algumas pessoas ao ensino universitário e outras a condenação de não irem para o ensino universitário.
E depois temos a consequência de considerar que os primeiros foram os vencedores e os segundos derrotados.
Esta meritocracia, que não tem as mesmas oportunidades para todos, tem um peso considerável na sociedade portuguesa?
Eu penso que sim, mas claro que podemos considerar períodos diferentes da economia portuguesa e da sociedade portuguesa.
É evidente que, antes do 25 de Abril, o acesso ao ensino superior era restritíssimo, era só para as classes mais elevadas. Hoje em dia, apesar de tudo, as coisas melhoraram um pouco e já há pessoas que conseguem vencer essas desigualdades.
Agora, o que não se pode esperar é que, sem haver uma alteração global, sem haver respeito pelo tal bem comum, se esteja a atingir uma sociedade mais justa, só porque uns conseguiram sobreviver a todas as dificuldades. A grande maioria continua de fora.
Uma lógica que tem sido espelhada por movimentos mais populistas e de extrema direita tem a ver precisamente com a rejeição de medidas que tentam reduzir algumas das discrepâncias e desigualdades nos vários quadros da sociedade. E criticam apoios sociais, criticam também medidas de paridade e de igualdade. Como é que se combate esta lógica e ao mesmo tempo, garantindo que de facto queremos os melhores, mas queremos que toda a gente tenha oportunidade de ser melhor?
Se pensarmos na extrema-direita, como a portuguesa, como a de outros países onde têm estado a triunfar ou a marcar muitos pontos, há uma coisa que parece um pouco surpreendente: A base de recrutamento da extrema-direita é junto das classes mais desfavorecidas, que deveriam gostar das medidas que as deviam apoiar.
Mas, aparentemente, estas pessoas sentem-se muito agredidas e o autor é muito categórico nisto pela forma como as elites falam dos derrotados e dos que perderam e, ao mesmo tempo, da forma como falam de si próprios e dos vencedores. Isso cria um ambiente de despeito que, por exemplo, alimentou a campanha Trump.
Há pouco, falou das universidades. Estamos a viver um aumento do custo de vida que os próprios estudantes universitários sentem e há muitos estudantes que não tem facilidade em sequer ter habitação perto da faculdade onde pretendem estudar. As universidades portuguesas, nomeadamente as universidades públicas, oferecem oportunidades para todos, ou há aqui algum afunilamento de quem consegue ter acesso a estudos superiores que lhes permitem depois chegar mais longe?
Nós temos um problema que é o do acesso ao ensino superior. Há muito mais alunos no ensino superior do que via antes de 25 de abril, mas continua a não haver generalização do acesso ao ensino superior. Isto tem atrás de si o próprio sistema de recrutamento para o ensino superior, que valoriza em 60%, ou em 50% a nota obtida durante o ensino secundário.
Ora, na nota obtida no ensino secundário é muito evidente a influência do fator riqueza, porque os filhos de pais ricos puderam ter explicadores, puderam ter condições excecionalmente boas para ter boas notas. E, portanto, quando se faz o último cálculo para a entrada para a universidade, eles estão favorecidos.
Devíamos ter quotas, por exemplo, para os imigrantes que vieram para Portugal, particularmente devíamos ter para os PALOP, e, depois, também devíamos ter quotas para as classes mais desfavorecidas. E se conseguíssemos com isso tornar o ensino universitário mais abrangente, isso melhorava bastante a situação.