Em entrevista à Renascença, a co-fundadora do movimento colaborativo de reflexão empresarial IMAGINE responsabiliza os líderes em relação ao legado que as suas decisões vão deixar no planeta, mas encara as lideranças empresariais como parceiros positivos e não apenas alvos de demonização popular. Nesta conversa, Valerie Keller defende que a presença de mulheres em cargos de topo faz mesmo a diferença e lembra que a cidadania, sendo importante nos movimentos de mudança, não pode ficar à porta dos conselhos de administração.
Valerie Keller trabalha para transformar o mundo através das empresas e, nestas, por via da mudança de mentalidades dos seus líderes. Criou com outros empresários e gestores o movimento IMAGINE que aposta nas ligações entre os conselhos de administração e os inovadores para que juntos possam caminhar na senda da sustentabilidade. Keller esteve nos últimos dias em Lisboa para participar no ciclo "Mudar", composto por workshops e conferências organizadas pela Culturgest e Fidelidade, que durante dois dias debateram Economia, Alterações Climáticas, Diversidade e Inclusão.
Costuma sublinhar a necessidade de mudança nas lideranças. Qual é o objetivo desse movimento e que ferramentas podem ser usadas?
A liderança é realmente contextual, depende do que é necessário no momento. A Humanidade está a viver um tempo muito importante e, embora cada geração pense que está viver um tempo único na história, a verdade é que, de acordo com a ciência e com o que podemos observar, isso está mesmo a acontecer. A liderança de que precisamos é a dos seres humanos que se esforçam por reconhecer que superámos os nossos limites planetários, que não somos capazes de cuidar de todos nós. Isso serve para as lideranças empresariais e políticas, mas também todos nós podemos ser líderes, questionando-nos sobre o que podemos fazer para melhorar o nosso mundo, seja onde estivermos, face aos desafios ambientais e humanos que enfrentamos. Vemos líderes empresariais que sabem que não podemos esperar pelos líderes políticos. Há um alargamento da noção do que é a minha responsabilidade, questionando de que forma podemos fazer parte da mudança. Em todo o mundo, temos líderes que estão a esforçar-se para serem mais corajosos. O objetivo deste movimento é uma liderança corajosa, que podemos alcançar por exemplo quando líderes empresariais que usam o seu sentido de responsabilidade e o poder da sua empresa ou indústria para serem parte da solução. Temos muitas empresas que se unem em parcerias e é a ação coletiva em torno do que podemos fazer para mudar o sistema atual. Aquele que temos não está a funcionar para o ambiente e para as pessoas e temos que saber o que podemos fazer coletivamente para mudar isto.
Falando em liderança corajosa, os objetivos de longo prazo significam que tomar uma decisão hoje não vai ser compensadora no próximo ciclo eleitoral. A decisão de longo prazo está hoje mais nas mãos das empresas ou dos governos ?
Sim, coloca absolutamente o dedo na ferida. O pensamento de curto prazo induz comportamentos de curto prazo. Neste momento vivo na Europa, mas em tempos fui convidada para concorrer a um cargo nos EUA, para o Congresso americano, que é um ciclo de dois anos. Pensei que aquilo não fazia qualquer sentido, porque gasta-se o tempo a angariar dinheiro para tentar ser eleito e tentar conseguir fazer alguma mudança, e de repente está-se novamente fora do cargo. E por isso, quando me encontrei nessa encruzilhada, decidi entrar no mundo dos negócios, porque não se conseguem criar mudanças com esses ciclos de curto prazo . Não importa o quão corajoso você seja, porque é realmente necessário ser eficaz e é preciso ficar tempo suficiente para poder criar um efeito de mudança. Entrei no mundo dos negócios, fiz um MBA de meio de carreira na Escola de Negócios Said da Universidade de Oxford, porque eles olhavam para os negócios como parte de um impacto social mais amplo. Escolhi os negócios como um lugar para criar impacto e muito porque se tratava de uma vida gratificante, onde é possível melhorar a vida dos outros. Muitas pessoas poderão argumentar que os negócios também vivem em ciclos de curto prazo. Por isso, o desafio passa pelas empresas onde temos líderes corajosos que realmente querem fazer esta transição que passa pela forma como fazemos as coisas, como cultivamos os nossos alimentos, como fazemos as nossas roupas ou como são as nossas fontes de energia. Isso implica realmente transformar os seus produtos e o seu portfólio, e isso exige um investimento de longo prazo. Há que fazer um reenquadramento num lugar onde a inovação também pode prosperar. Precisamos que os líderes de hoje sejam capazes de comunicar às suas administrações e aos seus investidores que isto não é opção entre ações de curto prazo versus um longo prazo que seja bom para o mundo. Na verdade, isto é sobre todos nós e se não nos adaptarmos hoje, não estaremos por cá a longo prazo no futuro. Infelizmente, os dados são tão claros que nos mostram que o custo da inação é maior do que o da ação. Trata-se de uma decisão de negócio que se torna imperativa. Isso requer que existam seres humanos que entendam que estão em posições de liderança e não querem olhar para trás e reconhecer que tiveram o poder e a capacidade de ajudar a mudar as coisas e não o fizeram. É este tipo de conversa que também os pais e as mães estão a ter à mesa de jantar com os filhos, reconhecendo que não podemos seguir como temos feito e olhando para as nossas oportunidades e responsabilidades.
Temos também o fenómenos como o "greenwashing", porque em matéria de responsabilidade social das empresas, quase todas dizem hoje que são "verdes" e pela sustentabilidade. Onde fica a linha que faz a diferença entre o comportamento das empresas?
Em primeiro lugar, para existir um "greenwashing", há que ter pelo menos essa posição de querer ser "verde" ou ter um propósito. Há 10 anos, toda a gente discutia sobre a primazia do acionista e se as empresas deviam mesmo ter qualquer tipo de responsabilidade social. Hoje em dia, querer mostrar que se é bom para o mundo cria uma lacuna que implica confrontar o que se diz com o que realmente se faz. Trata-se aqui de uma oportunidade única de mostrar qual o papel que a empresa desempenha a favor da sociedade e do ambiente no seu próprio negócio e na solução dos desafios sistémicos, por via da sua cadeia de fornecimentos ou do seu poder aquisitivo de produtos e serviços. E aqui já estamos a ir além do "greenwashing", porque a empresa pode mostrar, por exemplo, os seus progressos em relação à diversidade ou à proteção das suas pessoas, mas - lamento dizer - é preciso definir como, dentro do nosso negócio, gastamos tempo e dinheiro de forma a cuidar de um sistema mais amplo, de um grupo mais amplo de pessoas. E é preciso também agir no conjunto dos agentes de cada indústria para ver como juntos podemos ajudar a mudar o contexto regulatório para que isto ganhe mais peso. Já fizemos isto com os setores da moda e da alimentação e com os nossos líderes da IMAGINE encontramos gente que reconhece que não é suficiente dizer que estamos a fazer o melhor que podemos como empresa, mas a caminhar juntos para mudar o sistema. Isso está para lá do "greenwashing".
Pode dar-nos exemplos do trabalho que faz com as empresas sobre este assunto na IMAGINE?
É um trabalho muito inspirador. Quando pensamos em empresas no contexto da IMAGINE, estamos sobretudo a pensar nas pessoas que detêm cargos nelas. Costumo dizer que as organizações são na verdade compostas por organismos. Nós ajudamos os presidentes executivos ( CEO ) e as suas equipas de liderança nalgumas das maiores empresas do mundo, juntando-os a pessoas inovadoras e disruptivas, com ideias incríveis sobre questões como o cultivo de alimentos ou novas formas de construir produtos na moda ou nos têxteis, por exemplo. Juntamos essas pessoas com novas maneiras de pensar modelos de negócios e tecnologias com líderes dentro do espaço corporativo. O trabalho realmente empolgante da IMAGINE é poder reunir pequenos grupos de pessoas que podem alavancar-se mutuamente formando uma comunidade onde constatam que observam o mundo de uma maneira muito semelhante. Todos querem ser capazes de trazer os seus negócios, tecnologias, capacidades e serviços para resolver estes desafios, pensando tudo como um sistema e agindo de forma diferente, fazendo uma parceria concreta e de forma prática. Acabámos de receber 40 líderes juntos em Oxford, na interseção dos setores da alimentação, da saúde e do clima, e tivemos mais de 100 candidatos de lideranças de todo o mundo escolhidos pelo nosso Conselho de Missão e o nosso círculo de ex-alunos. Temos um círculo de CEOs, daqueles que já fizeram tudo isto, como o meu co-fundador, que se aposentou da Unilever, e presidentes de outras empresas. Reuniram-se com outros líderes durante quatro dias e meio em Oxford, para pensar sobre os nossos sistemas. Olhamos para o mundo e concluímos que estamos num momento de revolução ou de renascimento? Como podemos trabalhar juntos, particularmente na interseção de alimentação, saúde e clima, para mudar o ambiente regulatório? Como acelerar as nossas tecnologias incríveis para ganhar escala ? Esta é realmente uma oportunidade para começar a desenvolver a capacidade de realmente ouvir-mo-nos uns aos outros e também a comunidades mais amplas.
Existe uma discussão cada vez mais ampla sobre o empoderamento feminino em termos de liderança nos negócios nas empresas. As lideranças femininas nos cargos executivos fazem realmente a diferença ?
Nasci nesta realidade como uma mulher e como alguém que quer ajudar o mundo a viver uma vida boa. E metade da população mundial aparenta ser como eu neste mundo. Temos metade da população mundial que se apresenta em sororidade como parte da humanidade, apesar das posições de liderança, exercidas por pessoas que decidem sobre tempo e dinheiro, seja nos negócio ou nos governos, não serem compostas por pessoas que são como eu. Repare que as mulheres são as que pagam o preço mais caro e as mais afetadas pela atual crise climática. Respondendo à sua pergunta, os dados são hoje muito claros. As mulheres no governo impulsionam a paz e o desenvolvimento. Sabemos que as mulheres nos negócios impulsionam a ação climática. Vimos isso após a crise financeira, na forma como as pessoas caminharam para a transição dentro da mudança tecnológica. Sabemos que as mulheres na sociedade mantêm as comunidades a funcionar. A razão pela qual me juntei ao conselho de liderança feminina de Harvard na Kennedy School foi porque a ciência estava a analisar de forma inequívoca o que acontece quando se eliminam as diferenças de género. Trata-se de uma mudança na sociedade no sentido em que a Humanidade está melhor quando somos representados pela plenitude do nosso pensamento. Nós temos capacidades diferentes, os nossos cérebros desenvolvem-se de um modo um pouco diferente, o que nos permite ver e trazer as coisas de uma perspetiva também diferente. Não se trata apenas de equidade e justiça ou de assumir que metade da população mundial são mulheres e portanto precisamos de ser capazes de tomar decisões sobre o que nos afeta, principalmente quando somos afetadas desproporcionalmente. A verdade é que obtemos melhores resultados. Eu mesmo vi isso como fundadora e CEO, como membro de um conselho de administração. É um ambiente completamente diferente e, quando há diversidade, a qualidade dos resultados é maior e, na verdade, pode ser mais gratificante.
Como analisa as lideranças cidadãs ? São suficientemente fortes para promover mudanças, sabendo que as sociedades fornecem líderes que por vezes cruzaram a linha para a política ?
Sim, têm um papel muito importante. Somos todos cidadãos do planeta Terra. A mudança das consciências acontece quando as pessoas assumem que estamos todos juntos nisto. Cada cidadão tem poderes no seu próprio comportamento, no seu poder de compra, no seu ativismo. Portanto, a ação começa connosco. Estamos a ver essa mudança de consciência em todo o mundo e, nas salas de administração e em lugares políticos, os líderes vão comentando que os cidadãos mudaram e exigem mais deles. Esse papel é importante e tão incrivelmente claro. A maioria das ideias e ações vem das pessoas. Nos EUA, tivemos Rosa Parks, como uma pessoa que tomou uma posição. Temos também Greta Thunberg que, obviamente, ajudou a mudar mentalidades e a capacitar tanta gente de uma geração mais jovem para dizer que não podem mexer assim com as nossas vidas. O papel dos cidadãos é muito, muito importante. Mas existe também o papel dos cidadãos em posições de poder, com grande capacidade aquisitiva através da sua cadeia de fornecedores, ou que têm poder político, podendo todos eles assumir uma responsabilidade. Todos nós estamos juntos nisto. E quando permitimos que empresas ou acionistas lucrem à custa de todos nós ou que governos e pessoas em posição de poder lucrem com isto, estamos numa situação perdedora. Mas há outra mensagem que eu deixaria: a demonização das pessoas que estão em posições de poder é potencialmente inútil. Ao contrário, devemos perguntar como podemos ir juntos. Devemos assumir que as pessoas estão a fazer o melhor que podem a partir do seu estado de consciência. Como podemos fazer uma parceria com o outro ? Essa é uma mudança fundamental.