Talvez tenham vindo em nome de Tuvalu, Cook, Marshall, Kiribati, esses lugares onde muitos estendem o pé ao sol e ao mar sem pensar que a terra acaba daí por dois graus centígrados. Num dos cantos da Praça da República, sete mulheres vestidas de anjos reclamam ter vindo a Paris para defender essa gente “sem voz”, mães e avós, "porque as crianças não estão a ser escutadas”. Para as Climate Guardians, tem sido uma ronda incessante de intervenções artísticas pelos lugares mais turísticos de Paris. Sempre empunhando redacções coloridas, com letra e traço de meninos que querem que o mundo não derreta como um simples gelado ao sol da Austrália.
Cheias, tornados, secas, incêndios. Cada um traz as suas pegadas regionais de desastre, sapatilhas ou ténis, botas, saltos altos. Tudo para a praça, a cada um o seu sapato silencioso para pisar em par os calos dos governantes. Longe de Le Bourget, centro de conferências das altas esferas guardadas por mais de 2800 policias e gendarmes, a Praça da República enche-se de 20 mil sapatos de toda a gente. Os de Francisco, de Ban, de Therese, Manuel. De todos os que queriam marchar mas não puderam ou não vieram. Alguns trazem mensagens de dor pela tragédia recente, “ o amor vencerá” consegue ler-se em muito calçado. Seria em breve todo recolhido em sacos brancos para distribuição por necessitados.
Uma da tarde. A Praça está guardada, oh la la se está, carrinhas sem fim da Policia de Intervenção, estacionadas nos boulevard ali ao lado. Há um acordo tácito na capital do cada vez mais contestado “estado de emergência”. A polícia não se interessa por sapatos e vai estando agora de mil olhos no cordão que se vai estender, mão na mão, pela Avenida Voltaire até ao Bataclan.
Vem gente de todo o lado, mas muita apenas de França. É como se o Hexágono se estirasse numa recta encostada às montras, algumas decoradas com a bandeira tricolor. Vêm crianças, pais, filhos, jovens, avós. Vêm senhoras de Avignon, da Adeo Animalis que, adivinha-se, protege os animais. “Precisamos uns dos outros para salvar o planeta”, diz-me Cecile, em nome dos 800 membros da associação. E faz-se a “onda mexicana”, como que a provar que não é apenas a dor que vinga nas ruas de Paris.
“Pas de clima, changez le system”, grita um grupo que vai avançando por este quilómetro de mãos dadas no passeio da avenida Voltaire.
Laure, 22 anos, estudante de cinema e literatura espanhola, vem sozinha e assume um cartaz que pede telhados amigos do ambiente. "Os meus amigos sabem que há um problema mas ninguém quer fazer nada”, desabafa para afirmar porque veio marcar uma posição. Uma efervescência controlada no combate ao estado de emergência, é o que se sente nas ruas mais sensíveis de Paris.
Desactivado o cordão humano, batem as duas da tarde e a avenida volta a ter duas pontas para pegar em cada um dos lados nessa emergência. No fundo da rua, está o Bataclan, ainda com o letreiro do seu concerto mais trágico, mergulhado agora num corropio de presidentes, muita segurança, primeiros-ministros, repórteres de imagem, grandes coroas de flores, homenagens silenciosas. Há muita gente anónima com os olhos inchados. Fixam-se discretamente a sós no tapume que apoia um enorme mural de velas, cartas, desenhos carregados a lápis de dor.
Lá do outro lado da rua, daqui a pouco, os olhos hão de verter lágrimas. Mas por causa dos que, em plena Praça da República, não hesitam em pegar noutros objectos de solidariedade para lançar contra o Corpo Nacional de Polícia. Minutos depois, um grupo anónimo faz a defesa do memorial da Praça da República com a melhor arma que tem. As mesmas mãos que se estenderam no Boulevard Voltaire neste frio último domingo de um Novembro que tão cedo não vai sair da memória dos franceses.