Viver e morrer só, sem família nem amigos, é uma realidade na cidade de Lisboa, onde a Irmandade da Misericórdia e São Roque acompanha até à última morada quem termina a vida nestas circunstâncias.
Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, o provedor, Mário Pinto Coelho considera urgente que se criem mais respostas em cuidados continuados e paliativos, porque com o aumento da longevidade cresceram os casos de solidão e isolamento, de gente que vive sem qualquer apoio ou suporte familiar.
Entre as atividades a que a Irmandade se dedica está o acompanhamento das cerimónias fúnebres de quem morre sozinho. Chocou saber recentemente que de outubro do ano passado a outubro deste ano quase duplicou o número de pessoas cujo corpo não foi reclamado por ninguém ao Instituto de Medicina Legal. Esse aumento surpreendeu-vos?
Já o ano passado o número foi um pouco maior do que é habitual. Nós acompanhamos estes funerais desde maio de 2004, e nos anos anteriores foram na ordem dos 130, 150. O ano passado tivemos 194, o que já foi substancialmente mais. Este ano, até 17 de outubro, foram 214, mas no dia seguinte já eram 215, agora já são mais de 220.
Esta é uma realidade em que muitos não pensam, mas que existe: pessoas que vivem sozinhas, que acabam por morrer e o corpo não é reclamado. A pandemia agravou estas situações?
Penso que sim, porque nós acompanhamos quer funerais Covid, quer não Covid, e este número tem certamente a ver também com aqueles que foram atingidos pela doença. Muitas vezes não temos conhecimento do nome da pessoa, quanto mais da origem ou da história, mantemo-nos afastados, não queremos conhecer e não nos dão a conhecer. Portanto, não podemos dizer que a percentagem foi maior ou menor por Covid. Efetivamente aumentou, e sabemos que muitos dos que acompanhámos foram mortes por Covid.
O abandono na hora da morte é transversal a todas as idades? Porque um dos dados que revelaram foi o das crianças. Não se fala muito nisso. Aconteceu sempre, ou também se agravou neste ano?
Tem acontecido sempre, todos os anos, quer crianças, quer nados-mortos. Em 14 anos acompanhámos 80 e tal crianças. Amanhã e depois de amanhã vamos acompanhar cinco crianças que morreram, uma com dois dias, outra com duas horas. Nados mortos este ano até nem houve muitos, mas há anos em que há bastantes, mais de uma dezena.
Como é que funciona este acompanhamento que fazem? São contactados pelo Hospital para que sejam recolhidos esses corpos e seja feito o funeral?
O que acontece é que quando a pessoa morre na rua, nos hospitais, em casa, em pensões ou quartos alugados, vai para o Instituto de Medicina Legal. Aí o processo dura pelo menos 30 dias para avaliação, se foi crime ou qualquer outra morte não natural. Quando efetivamente o processo administrativo fica resolvido, o Instituto de Medicina Legal entra em contacto com uma agência funerária que é contratada pela Misericórdia de Lisboa. A SCML, de três em três anos, faz um concurso público entre as agências funerárias, ganha uma, e durante esses três anos é essa agência que faz os funerais, não só daqueles que acompanhamos, mas também daqueles que morrem nos lares e instituições da Santa Casa.
A Medicina Legal entra em contacto com a agência, e quando não há acompanhamento de ninguém – porque se as pessoas morrerem nos equipamentos da Santa Casa, as pessoas que os tratavam, que são a sua última família, acompanham-nos sempre –, mandam um email dizer que amanhã, ou depois amanhã, no cemitério do Alto de São João, Benfica ou Carnide, há um funeral às tantas horas. São normalmente às horas de trabalho, 10h00 da manhã, ou 15h00. A partir daí, entramos em contacto com a nossa equipa, temos permanentemente 17 irmãos e voluntários que acompanham estes funerais, vemos quem está disponível e no dia próprio estará no cemitério.
Há pouco disse que não se interessam muito por explorar a história pessoal de cada um. Há a tendência de pensar que estas situações acontecem só com sem-abrigo, mas não, atingem muitas pessoas que vivem simplesmente sozinhas?
Exatamente. Este ano até nem houve muitos sem-abrigo. São pessoas que, por idade ou por doença, morrem nos vários locais que referi. Tem a ver com muitas causas, uma tem a ver com o ditado português que diz “em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”, são as condições económicas e de habitabilidade. Depois, a droga também é um fator importante, o desajustamento, as doenças psicológicas e mentais, as doenças físicas. Os outros são resultado da pobreza, vão para os hospitais, que estão cheios de camas ocupadas com pessoas idosas que os filhos deixam lá, e que muitas vezes até alteram as moradas para não serem contactados, para não terem de ir buscar os pais ou familiares para casa, porque não têm condições nem de os receber, nem de os acompanhar, e portanto ficam no hospital.
Aqui era necessário haver um volume grande de unidades de cuidados continuados integrados, mas como sabem em Lisboa é muito raro. A Misericórdia de Lisboa tem neste momento três equipamentos, um já com vários anos, na Aldeia de Juso, em Cascais, a Unidade de Cuidados Continuados Maria José Nogueira Pinto, que foi quem teve a iniciativa, e que tem 40 camas. Tem também um pavilhão no Hospital Pulido Valente, a Unidade de São Roque, com 41 camas, e agora já está a funcionar o antigo Hospital da Estrela, que é a Unidade Rainha D. Leonor, que vai ter 91 camas. Estes números são grandes, mas são infinitamente pequenos em relação às necessidades da cidade em termos de cuidados continuados e paliativos.
Há um problema que parece estar subjacente a todos, que é o problema da solidão. Vive-se e morre-se só em Lisboa?
Muito, muito, e cada vez mais, até pela longevidade. Como sabe, até há meia dúzia de anos a esperança média de vida seria de 70, 80 anos. Ainda ontem soube, numa reunião com o Provedor da SCML, que em Lisboa existem 5.000 idosos com mais de 100 anos. Há dois anos eram 3.000. O problema da solidão e da falta de apoio é enorme.
Tomar consciência desta realidade pode fazer com que haja uma resposta mais solidária da sociedade?
Isto começa logo no edifício em que cada um habita. A maior parte das pessoas não conhece os vizinhos do próprio prédio, porque sai de manhã para o trabalho, e encontram-se quando muito no elevador, à noite, quando voltam.
Era importante, e as paróquias têm uma responsabilidade grande nisso, em encontrar voluntários, integrados por técnicos, que pudessem acompanhar, estar presentes, fazer um telefonema. Atualmente já há vários modos e processos, a teleassistência, mas não é mesma coisa ter um telefone disponível, em caso de necessidade, ou ter alguém que telefone a perguntar se precisa de apoio ou ajuda, criar-se aqui uma rede. Já há algumas instituições, mas de facto em relação à dimensão que o problema cada vez mais tem, ainda é insuficiente.
Depois, o problema da habitação, que é gravíssimo na cidade de Lisboa, e não só, mas que não ajuda nada. E o problema da saúde e da disponibilidade de meios do Serviço Nacional de Saúde, tudo isto ajuda a criar dramas que depois acabam em isolamento e em morte, nestas condições.
Este acompanhar que fazem na hora da morte, dar um funeral digno a quem morre só, é o cumprir das obras de Misericórdia. É um consolo importante?
São duas obras de Misericórdia, uma é "enterrar os mortos", e outra é "rezar pelos vivos e pelos mortos". Nós o que queremos com este acompanhamento é dar à pessoa que vai a enterrar a mesma dignidade que teria qualquer um de nós, ou da nossa família, se fosse o seu funeral. Efetivamente, muitas dessas pessoas não tiveram em vida, ou no final de vida, a dignidade que mereciam como filhos de Deus, e nós oferecemo-nos para os acompanhar na sua última morada e dar-lhes a dignidade, a oração e as flores que teria outro qualquer funeral.
Foi importante este caminho, porque, como sabem, antigamente iam todos para uma vala comum, mais tarde passou a haver o funeral do pobre. Quando iniciámos este trabalho, as capelas que todos os cemitérios têm, estavam ocupadas como armazéns, e nós conseguimos que aos poucos reabrissem como capelas. Dou o exemplo da de Benfica, que estava completamente ocupada, há meia dúzia de anos, e hoje é uma capela muito bonita. Ser na igreja, ou na capela, para além de ser o local próprio, dá uma certa tranquilidade, outro respeito.
O funeral, depois de fazer a sua entrada e o seu registo, vai para a capela do cemitério, e aí é feita a encomendação do corpo, porque estes funerais são sempre acompanhados ou por um sacerdote, ou por um ministro extraordinário de exéquias, que faz a sua encomendação na presença dos irmãos de São Roque. Na nossa presença, tudo se passa com a maior dignidade. Às vezes até pessoas que estão no cemitério, e já nos conhecem pela frequência, vêm-se associar a nós para rezar.
Disse há pouco que são 17 voluntários que estão nesta equipa. Alguém que se sinta chamado a praticar esta obra de Misericórdia, como é que pode fazer?
Além destes 17 voluntários, temos mais uma quantidade de pessoas que se ofereceram, mas muitas vezes não podem por razões familiares, há pessoas que só podem ao fim-de-semana. Antigamente também havia funerais ao fim-de-semana, agora a agência funerária privilegia a semana, portanto, de segunda a sexta é que são os funerais. Há um núcleo que responde sempre, e temos sempre dado resposta.
Por ocasião do recente Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza (17 outubro), uma senhora telefonou, porque viu as notícias, e disse que gostaria de participar, e vai agora, com outro irmão, participar num funeral.
Falar da atividade e do que fazem, leva também a esse interesse. A que outras atividades é que se dedica a Irmandade da Misericórdia de São Roque?
A Irmandade, que nasceu em 1506, tem atualmente duas responsabilidades imensas, regidas por um decreto-lei que rege a Misericórdia de Lisboa: a manutenção do espírito cristão, com que a rainha D. Leonor criou a Misericórdia de Lisboa em 1498; a segunda responsabilidade é a do culto católico em todas as igrejas e capelas pertencentes à Santa Casa da Misericórdia, a começar pela Igreja de São Roque.
Temos três projetos a que damos a maior importância, pela sua dimensão: um é o acompanhamento dos funerais; outro, com igual interesse, é a realização há 18 anos, do Auto de Natal, que é escrito todos os anos e com música inédita. Trabalhamos com jovens e crianças desde os cinco anos até mais velhos, com mais de 80, na representação da peça. Às terças e quintas-feiras temos ensaio de um coro, nas instalações da Irmandade, com quase 40 pessoas idosas.
O que é importante nisto é o trabalho realizado ao longo dos meses, de setembro a dezembro, na descoberta, sobretudo dos jovens, do trabalhar em conjunto, da disciplina. Porque às vezes estes jovens são de famílias desestruturadas.
Estamos a falar de jovens, crianças e adultos ligados às instituições da Santa Casa?
Sim, das instituições da Misericórdia. A disciplina, a entreajuda, o espírito de Natal, o seu significado, o descobrir que todos precisam de todos – sozinho não faço nada, no representar preciso do outro –, esse trabalho que é feito por profissionais durante os quatro meses é que é importante e às vezes descobrem-se vocações: hoje um dos nossos meninos do auto de Natal integra o coro oficial do Teatro Nacional de São Carlos, e temos outra rapariga que hoje trabalha com o Filipe La Féria.
Também tem sido ocasião para descobrir talentos?
Exatamente. Há uns anos fizemos uma orquestra com 94 crianças a tocar violino. Havia crianças que tinham pouco jeito, mas sentimos que outras que se pudessem ter sido acompanhadas seriam hoje bons violinistas.
Onde é que o Auto de Natal pode ser visto?
No fim-de-semana anterior ao Natal, e as entradas são gratuitas. Antigamente a igreja de São Roque comportava 650 pessoas. No ano passado, com a pandemia e a redução do número de lugares, transformámos o Auto de Natal em filme, que foi depois projetado numa sala de cinema da cidade. Este ano esperamos que em dezembro tudo esteja quase ultrapassado e que, não sendo as 750 pessoas, possa ser metade. Nos participantes, entre crianças e idosos, contamos com cerca de 150 a 200 pessoas.
São muitos os equipamentos da Santa Casa da Misericórdia. Temos um protocolo que nos é dado pelo decreto-lei que rege a Santa Casa. Não trabalhamos exclusivamente com a SCML, mas como tem tantas valências e milhares de utentes, que tudo o que for feito é pouco em relação ao número de utentes e de valências: os hospitais, as creches, as escolas, a formação, os lares, os centros de dia… Tudo o que for feito é sempre pouco.
Tentamos integrar ações de solidariedade com a União das Misericórdias e nas reuniões do Patriarcado de Lisboa. Estamos presentes sempre que possível. Mas o trabalho na Misericórdia é maior.
A terceira valência que gostaria de referir é o acompanhamento que fazemos a 41 equipamentos sociais da Santa Casa: são 17 lares, cerca de 20 centros de dia, e as três Unidades de Cuidados Continuados de que falei, onde temos responsabilidade no culto católico e nas capelas próprias dos equipamentos, que há vários que têm, como a Mitra, Santa Isabel, o Hospital de Santana ou o hospital de Alcoitão. São celebradas missas, confissões ou bênçãos dos doentes.
Quando não existe capela, fazemos no refeitório ou numa sala grande, levamos todas as alfaias necessárias, montamos um altar e são celebradas as Eucaristias nesses locais, com grande interesse e acompanhamento, sobretudo por parte dos idosos. Temos ainda o projeto ‘Cantar à varanda’. Como não podíamos entrar nos equipamentos (na pandemia), ficávamos do lado de fora a cantar.
Um quarto projeto que nos interessa muito é dirigido aos jovens entre os 10 e os 20 anos, mesmo que não tenham ligações à Igreja, mas que sejam integrados e queiram participar nas Jornadas Mundiais da Juventude Lisboa 2023. Há que os ligar ao movimento e entusiasmar, e essa é uma grande preocupação nossa, que os nossos meninos também participem ativamente nas Jornadas.
São mais de 100 projetos que foram agora aprovados no programa de atividades da Irmandade.
E que pode ser consultado no site da Irmandade?
Sim, temos o site e publicaremos o programa com os projetos e a história da Irmandade com mais pormenores.