A documentação fornecida pelas autoridades espanholas ao governo português sobre o impacte ambiental do armazém de resíduos nucleares de Almaraz, que deverá ficar pronto em 2019, não permite garantir que, em caso de acidente grave naquela infra-estrutura, Portugal não será afectado. De acordo com o relatório do grupo de trabalho técnico, a que a Renascença teve acesso, “não está demonstrado que, para acidentes extremos e de baixa probabilidade, não existem impactes significativos para Portugal”.
“A abordagem adoptada não constitui uma avaliação ambiental integrada do projecto, o que limita a ponderação da possibilidade de ocorrência de impactes, nomeadamente em território português”, conclui o relatório elaborado por um grupo de especialistas, que inclui elementos da Agência Portuguesa do Ambiente, das direcções-gerais dos Assuntos Europeus e da Saúde, da Ordem dos Engenheiros, do Instituto Superior Técnico (Lisboa) e da Universidade de Coimbra.
O documento sublinha que, apesar de as autoridades espanholas afirmarem que a construção do Armazém Temporário Individualizado (ATI) não terá impacte transfronteiriço, “tal conclusão não é suportada por qualquer evidência de análise em qualquer um dos documentos de suporte. As autoridades espanholas não procederam à análise de potenciais impactes transfronteiriços do projecto do ATI”.
O relatório, entregue aos deputados na terça-feira, foi elaborado na sequência do acordo amigável alcançado entre Portugal e Espanha que levou o Governo de António Costa a retirar a queixa apresentada em Bruxelas contra a construção do ATI.
Apesar das reservas expressas no documento, o Executivo português não levantou objecções aos planos espanhóis.
Estudo ambiental é “limitado” e “optimista”
Citado no relatório, Manuel Duarte Pinheiro, engenheiro do ambiente e professor do Instituto Superior Técnico, considera que não é provável que existam efeitos significativos em Portugal, mas diz que não se dispõe de informação que possa assegurar essa situação em cenários muitíssimo extremos, que mesmo sendo muito pouco prováveis seriam de uma gravidade extrema.
“A informação sobre acidentes graves é importante para determinar a possibilidade de eventuais efeitos significativos em Portugal”, diz o especialista.
Para este professor do IST, o estudo de impacte ambiental procede a uma análise “limitada e até optimista da avaliação, no caso dos impactes radiológicos, já que não considera os efeitos extremos nem os efeitos cumulativos”.
Apesar de considerar que “o projecto e os estudos denotam rigor e profundidade técnica”, Duarte Pinheiro salienta que algumas questões carecem de aprofundamento. É o caso, por exemplo, da ocorrência de um incêndio ou de cenários de inundação, nomeadamente causada pela ruptura da barragem de Valdecañas.
De acordo com os especialistas portugueses, “verifica-se a inexistência de uma barreira de confinamento das águas resultantes em caso de acidente, pluviosidade elevada ou inundações que poderão, em caso de perda de confinamento de um ou mais contentores, originar a contaminação radiológica desta água. O sistema de drenagem previsto não permite a contenção de quaisquer águas e ou escorrências contaminadas, como sejam águas resultantes do combate a incêndio”.
Recomendam, por isso, “o redimensionamento do sistema de drenagem de águas pluviais e de limpeza do ATI e encaminhamento das águas para uma bacia de retenção de forma a evitar a descarga na bacia do Tejo”.
Riscos por avaliar
Riscos adicionais decorrentes, por exemplo, da carga, manipulação, selagem e descontaminação dos contentores e da sua transferência para a viatura que efectuará o transporte dos resíduos até ao ATI, também não foram avaliados, conclui o relatório.
Da mesma forma, não foram discutidos os eventuais impactes cumulativos com outros projectos, entre os quais a própria central de Almaraz. A possibilidade de um acidente durante a construção do ATI e os efeitos na segurança da própria central nuclear está igualmente ausente. O relatório português recomenda, assim, a “revisão do plano de vigilância radiológica da CNA, em função da necessidade de contemplar a inclusão de uma nova fonte de radiação e de risco”.
Luís Figueiredo Neves, professor catedrático da Universidade de Coimbra e especialista em radioactividade ambiental, reconhece que existem alguns aspectos técnicos omissos ou não detalhados.
“Os documentos facultados pelas autoridades espanholas não evidenciam que tenham sido analisados potenciais efeitos da construção e operação do ATI no território português”, afirma este especialista, que, mesmo assim, assegura que em caso de acidente grave “não é crível que os efeitos no território português possam ser considerados significativos”.
Uma conclusão subscrita por Ricardo Oliveira e Raúl Pistone, da Ordem dos Engenheiros, que afirmam que “não é de considerar que a construção do ATI venha a provocar efeitos significativos na contaminação das águas do Tejo que se repercutiriam em Portugal”.
Durante o período de divulgação pública dos documentos fornecidos pelos espanhóis, nove ambientalistas e associações ambientais apresentaram ao grupo técnico exposições sobre este tema, todas elas contra a construção do ATI e contra o prolongamento da vida útil da central para lá de 2020 – uma possibilidade contemplada no anteprojecto de construção do armazém.
Relatório discutido à porta fechada no Parlamento
Este relatório surge na sequência do acordo amigável alcançado entre Portugal e Espanha que levou o Governo de António Costa a retirar a queixa apresentada em Bruxelas contra a construção do ATI.
O acordo, mediado pelo presidente da Comissão Europeia, obrigava Espanha a partilhar com Portugal toda a informação pertinente em matéria de ambiente e segurança nuclear com vista a determinar a ausência de efeitos significativos do projecto no território português.
Na sequência do acordo, um grupo de peritos e o próprio ministro do Ambiente visitaram a central nuclear e foi elaborado este relatório com base na informação fornecida por Espanha. No final de Abril, o presidente da Agência Portuguesa do Ambiente apresentou publicamente as conclusões, garantindo que “não se estimam impactos transfronteiriços significativos em situação normal de funcionamento do armazém nem em caso de acidentes severos", uma situação que, de acordo com o relatório, nunca foi estudada.
Os deputados receberam o relatório na última terça-feira, mas foi-lhes pedido que não usassem a informação na audição dessa tarde com os ministros do Ambiente e dos Negócios Estrangeiros – que ficou marcada pela notícia da Renascença que deu conta de uma simulação feita pelo Exército sobre os efeitos de um acidente grave em Almaraz.
O presidente da Agência Portuguesa do Ambiente disponibilizou-se para discutir com os deputados, mas à porta fechada, alegando que alguma da matéria disponibilizada por Espanha é confidencial.
O armazém temporário de Almaraz – uma construção com 3.646 metros quadrados – deverá ficar pronto em 2019 e permitirá armazenar, dentro de contentores, as varetas de urânio enriquecido usadas pelos reactores e que são parcialmente substituídas de 18 em 18 meses.
Apesar de o ATI ficar apenas a um a dois quilómetros dos reactores, o transporte das varetas demorará cerca de 10 horas – um dado que ilustra a delicadeza da operação.