Racionamento de fármacos? Podemos fazer mas… shhh…ninguém pode saber
17-09-2019 - 19:16
 • Ana Sofia Carvalho*

A evolução dos preços de medicamentos, das intervenções médicas e dos métodos de diagnóstico tem colocado importantes desafios, quer ao nível dos potenciais ganhos na saúde quer ao nível da crescente escalada dos seus custos.

A recente questão levantada por um grupo de médicos oncologistas, que acusa o Infarmed de estar a racionar o acesso dos doentes com cancro a novas terapias oncológicas, veio, uma vez mais, reiterar a pertinência de discutir de uma forma clara, transparente, e, acima de tudo justa, os critérios para estabelecer as prioridades em saúde.

Tive, numa outra ocasião a oportunidade de desenvolver, ainda que de forma breve, esta problemática ligada, especificamente, à ideia de usar a idade para estabelecer, ou não, prioridades no acesso a cuidados médicos.

De facto, o Conselho Nacional de Ética, no seu parecer 64/ CNECV/2012 (Parecer sobre um Modelo de Deliberação para Financiamento do Custo dos Medicamentos), considerou que existe fundamento ético para que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) promova medidas para conter custos, tentando assegurar uma "justa e equilibrada distribuição dos recursos".

Na altura, a palavra racionamento, gerou, a meu ver de forma completamente desproporcionada, um debate intenso. Talvez, pela primeira vez os profissionais de saúde e os políticos foram sacudidos por esta mudança de paradigma emergente; não vamos poder dar tudo a todos e vamos, por mais difícil que seja, ter que escolher.

A evolução dos preços de medicamentos, das intervenções médicas e dos métodos de diagnóstico tem colocado importantes desafios, quer ao nível dos potenciais ganhos na saúde quer ao nível da crescente escalada dos seus custos.

A estas questões, acresce ainda o facto de a população portuguesa envelhecer menos saudável que a maioria dos países do espaço europeu e, ainda, o facto de cada vez termos a população ativa e jovem com problemas como diabetes, obesidade que, certamente, resultarão em acréscimos significativos nos custos com a sua saúde.

Partindo da premissa que queremos que todos vivam mais tempo e que o progresso científico e tecnológico irá continuar a desenvolver-se exponencialmente torna-se, de facto, imperativo ser criativo nas soluções; assim, é hoje imperativo (1) investir na prevenção eficaz, utilizando modelos de saúde pública que permitam combater alguns dos flagelos que afetam os futuros velhos, que tanto quanto se antecipa vão ficar doentes mesmo antes de serem velhos e, (2) tal como sugerido pelo CNECV em 2012, envolver os profissionais de saúde, os investigadores e a sociedade na identificação de problemas associados ao uso indevido dos recursos, incluindo desperdício e, mais desafiante, no desenho de diretrizes que permitam delinear prioridades e fazer escolhas que sejam justas e equitativas.

Estranhamente, é agora, numa altura denominada, talvez de forma desadequada, de pós-crise que a dimensão desta problemática e o debate sobre os custos dos medicamentos e as restrições à prescrição se intensifica. Perdemos sete anos, mas hoje, mais que nunca penso que encontramos consenso sobre a necessidade de propor um modelo de decisão baseado no princípio da justiça que permita, em última análise, a salvaguarda da dignidade de quem é tratado e de quem trata. Numa situação eticamente imperfeita, onde a possibilidade de dar o melhor a todos, está cada vez mais comprometida, um modelo, que tal como sugerido no parecer do CNECV, permita usar critérios transparentes e justos para estabelecer prioridades na alocação de recursos é incontornável…

Pensar que se pode estabelecer prioridades e fazer escolhas sem que estas sejam enformadas em critérios éticos é, de facto, moral e eticamente inaceitável.


*Ana Sofia Carvalho é Professora do Instituto de Bioética