É um contributo para expressar a ideia de mosteiro-tipo da ordem cartusiana. O livro “O Eremitério da Cartuxa de Évora. Arquitectura e Vida Monástica”, do arquiteto Luís Ferro, está prestes a ser publicado e vai desvendar novas especificidades do Mosteiro de Santa Maria Scala Coeli - ou Cartuxa de Évora -, datado de finais do século XVI e sinal da única presença, em Portugal, dos Monges Cartuxos.
"Pensei estabelecer uma ligação entre o universo do sagrado, pelo qual tenho um enorme interesse, apesar de não ser religioso, com uma conceção de habitar extrema, coadjuvada pelas ferramentas da arquitetura", explica o autor, em entrevista à Renascença.
A investigação de Luís Ferro teve como suporte uma análise cuidada não só dos elementos escritos, mas, especialmente, dos elementos desenhados originais relativos aos vários projetos do mosteiro, muitos deles nunca antes publicados, consultados ou sequer catalogados.
Luís Ferro formou-se em Arquitetura pela Universidade de Évora, em 2010. É autor de diversos projetos de arquitetura em Lisboa, Évora, Beja e Alvito. Em 2016, foi um dos galardoados na 4.ª edição do Prémio Arquitetos Agora. Atualmente, é aluno do programa de doutoramento em Arquitetura da Faculdade de Arquitetura do Porto e Bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia.
“O Eremitério da Cartuxa de Évora: Arquitetura e Vida Monástica” é o título do seu primeiro livro, prestes a ser publicado. Como surgiu este projeto?
Este projeto surge por ocasião da minha tese de mestrado integrado em arquitetura. O Mosteiro de Santa Maria Scala Coeli, vulgarmente chamado Mosteiro da Cartuxa, foi o objeto do meu estudo, pois queria tentar perceber como o silêncio e o isolamento se constituíam como uma espécie de materiais de construção espacial. É um mosteiro para pessoas que acreditam que esse silêncio e isolamento extremos são o melhor veículo para a comunicação com Deus. Pensei, justamente, estabelecer uma ligação entre o universo do sagrado, pelo qual tenho um enorme interesse, apesar de não ser religioso, com uma conceção de habitar extrema, coadjuvada pelas ferramentas da arquitetura. O livro apresenta essa tese, melhorada e complementada com o trabalho que tenho desenvolvido em torno da arquitetura cartusiana.
Quando se refere a uma “arquitetura cartusiana”, que especificidades, que características próprias lhe podemos atribuir?
Características próprias, muito específicas. S. Bruno, fundador da Ordem dos Cartuxos, criou uma matriz que privilegia o habitar, mais do que qualquer outra dimensão ou função dentro do próprio mosteiro. A vida cartusiana implica que o monge tenha de viver em extremo isolamento e silêncio, mas esta forma de viver permite que, pelo menos uma vez por semana, os monges quebrem as regras, podendo conversar uns com os outros, tendo reuniões para se organizarem nas várias funções e, até, descarregar o peso da clausura que lhes molda personalidade. É uma vida extremamente estrita, mas pontuada, também, por períodos de socialização.
E a arquitetura está de acordo com esse carisma?
Sem dúvida. S. Bruno era um monge beneditino, de alguma forma inconformado e até perturbado com o modo como a Igreja e a Ordem dos Beneditinos se afastava, de forma gradual, daquilo que ele acreditava ser uma espécie de origem dos princípios religiosos: a simplicidade e a constante meditação, remetendo para a imagem dos padres do deserto, mais antiga do que a própria religião cristã. A ideia era criar um mosteiro que voltasse ao encontro desses princípios como forma de chegar mais perto de Deus.
Teria de ser, portanto, um mosteiro especial?
Sim. Aliás, a arquitetura monástica é toda ela especial pelas formas de vida que guarda no seu interior. O propósito de São Bruno era conseguir a reunião da estrutura cenobítica da vida beneditina com o eremitério dos Padres do Deserto. No caso da Cartuxa de Évora, esse elo é o claustro pequeno, que congrega os espaços coletivos, como a Sala do Capítulo, as várias capelas de oração conjunta, a igreja ou o refeitório.
É esse claustro que dá servidão a estes espaços coletivos. Mas a esta estrutura, que é a matriz, foi acrescentado de um outro espaço que atribui singularidade à arquitetura cartusiana, que é o claustro grande. Importa referir que é o maior claustro de Portugal. Tem 98x98 metros, a partir da face interior das colunas, e reúne em torno de si as celas dos padres eremitas. Para se percebe, é preciso dizer, também, que a comunidade cartusiana é composta pelos irmãos conversos, os que têm as funções laborais - como a portaria, a horta ou a cozinha -, e os irmãos eremitas, aqueles que vestem o hábito branco e vivem em profunda oração.
Manteve contacto com os monges na preparação deste livro?
Enquanto estudante de arquitetura, já tinha um grande interesse nesta forma de viver, mas era absolutamente ignorante no tema. Para este livro, em concreto, posso dizer-lhe que não foi nada fácil. Tive de insistir e mostrar como queria trabalhar neste tema e que havia matérias que nunca tinham sido discutidas ou faladas. Acabei por suscitar o interesse do prior, o padre Antão, e, desde aí, o contacto foi desenvolvido com o maior respeito pela comunidade. Foi-me permitido o acesso ao mosteiro e, progressivamente, fui ficando muito marcado pela sua arquitetura, mas também pela presença dos monges. Posso dizer-lhe que esta arquitetura não viveria sem este suporte de vida tão forte, tão claro e tão no limite. O produto arquitetónico só podia ser proporcionalmente intenso, atendendo à espiritualidade que ali se respira.
Nessas incursões pelo mosteiro, que descobertas fez?
Descobri imensas coisas. O meu trabalho e de quem comigo colaborou assentou, largamente, nos vários projetos que, ao longo do tempo, foram feitos para este mosteiro. A sua construção começou em 1587, mas, nos anos precedentes, três arquitetos apresentaram propostas, tendo sido eleita a de Giovanni Vicenzo Casale. Não temos como provar, mas é uma crença, depois da nossa investigação. A construção deste mosteiro ter-se-á dado porque os monges já viviam em Évora em 1587, possivelmente numas dependências do antigo convento de S. Francisco.
Acreditamos que, já estando na cidade e tendo falecido o arquiteto no início da obra de construção, os próprios monges assumiram a obra daquela que seria a sua casa. E há muitas diferenças comparativamente com o projeto inicial. É muito possível que os monges tenham alterado esse projeto, pois as diferenças apresentadas vão no sentido de ligar este mosteiro às restantes casas da Ordem. São diferenças muito sensíveis e comuns ao habitar cartusiano, requerendo um conhecimento específico que só eles podiam ter. Por exemplo, a orientação das celas, com muita luz, com sol direto, privilegiando um melhor habitar.
Esse detalhe, o rigor é revelador de que haveria conhecimento da parte dos monges...
Sim, embora o projeto de Giovanni Casale já fosse muito bom e pormenorizado. Contudo, havia questões que mostravam uma certa ignorância ou inocência, se quiser, do próprio arquiteto, mas os monges contribuíram para algumas alterações, melhorando essa sua relação com o espaço e privilegiando esse habitar.
Isso remete-nos para a sua investigação na procura do mosteiro-tipo?
Sim, o objetivo desta tese era o estudo da documentação desenhada, ao serviço da história do próprio mosteiro, para fazer a comparação desta arquitetura com outros mosteiros cartusianos e, assim, tentar contribuir para a enunciação do mosteiro-tipo cartusiano. No caso desta investigação, focou-se no espaço do eremitério, que é composto pelo claustro grande e as celas individuais em torno de si. Justamente, é o espaço mais singular e identitário dos mosteiros cartusianos e é este espaço que constrói este habitar que cumpre os votos cartusianos.
Nesta busca do mosteiro-tipo, também descobriu características que estejam apenas relacionadas com a Cartuxa de Évora?
Descobrimos coisas muito curiosas, nomeadamente do ponto de vista do posicionamento dos mosteiros, atendendo ao local onde estão inseridos geograficamente. No caso de Évora, assim de repente, ocorre-me o pequeno espaço no interior das celas, ao qual os monges chamam "estúdio", e que não existe em qualquer outro mosteiro cartusiano. É uma pequena divisão que, no caso do nosso mosteiro, se localiza ao lado do espaço do oratório e cuja função específica é unicamente a de estudo e guarida dos livros que são trazidos da biblioteca grande.
Há outras dimensões neste seu livro?
Seguramente. Uma ideia que me interessa bastante é a questão do caminhar dentro da vida cartusiana, enquanto exercício espiritual. Esta matriz foi criada a caminhar. S. Bruno e mais seis discípulos saíram do mosteiro beneditino onde estavam e caminharam para sul, apenas com um sentimento de inconformidade para com a vida que levavam. Retiraram-se para uma região rochosa chamada Chartreuse, que ficava no centro de um deserto que fazia parte da Diocese de Grenoble, em França. Quando aí chegaram, tiveram a coragem e a vontade de construir um protótipo de mosteiro que deu origem à primeira casa cartusiana. É isto que me interessa muito, ou seja, o que aconteceu nessa caminhada entre Reims e Grenoble, uma vez que foi durante esse percurso que eles conseguiram configurar uma ideia arquitetónica de mosteiro que melhor servia a espiritualidade desejada e que não viam ilustrada na vida beneditina.
Uma arquitetura pensada no caminho “do corpo” e para o caminho “do espírito”?
Repare, por exemplo, a função principal do claustro grande da Cartuxa de Évora é a de comunicação entre as várias divisões. Uma comunicação que não é simplificada, pelo contrário. O percurso é alongado para apoiar uma ideia de rotatividade, de repetição, e isto são exercícios espirituais dentro da própria liturgia cartusiana e, a meu ver, a arquitetura segue esse sentido.
Na única pausa semanal que têm, os monges, e está nos seus estatutos, saem do mosteiro e, dentro do espaço do deserto, que é a propriedade do mesmo, caminham e conversam. Aqui, o caminhar surge como descarga da clausura, quase como um exercício físico, mas também espiritual. Há uma ideia de caminhar que aponta para uma espécie de saúde vital, mental, que os ajuda a superar a clausura.
Nos dias de hoje, a Cartuxa de Évora é, para a cidade, uma das riquezas, sobretudo no campo espiritual, mas não só. Esta questão espacial é muito influenciada pela atmosfera que se respira em determinada região. Há uma relação entre estes mosteiros e o urbanismo contemporâneo?
Há um capítulo muito interessante neste livro, onde reflito sobre a evolução das próprias casas cartusianas em confronto, digamos assim, com o urbanismo contemporâneo. Ao longo desta ultima década, tenho visitado algumas casas e não parei de ser surpreendido ao deparar-me com as soluções encontradas nalguns destes mosteiros. Soluções contemporâneas. Dois exemplos. Num mosteiro, em Itália, o claustro grande tem um campo de futebol. Em França, num outro mosteiro, toda a sua estrutura foi aproveitada para construir uma aldeia. As celas foram transformadas em moradias unifamiliares e alguns dos espaços coletivos ainda têm servidão, mas o essencial é este conceito de aldeia contemporânea, a partir de uma casa cartusiana.
Algumas páginas deste livro são dedicadas a tentar perceber como a estrutura da arquitetura cartusiana ainda consegue ter espaço e ser pertinente dentro da vida contemporânea, para funções que são tudo menos espirituais ou cartusianas. O arquiteto Álvaro Siza diz que a arquitetura, quando é boa, vai ter sempre algum sentido e, de facto, a arquitetura cartusiana é muito, muito boa, não só no sentido habitacional/espiritual, mas também na clareza da estrutura espacial que apresenta.
Já leva vários anos dedicado a este tema que sempre o fascinou embora reconheça que não é religioso. Tem, seguramente, muitas histórias que o marcam. Para fecharmos a nossa conversa, há alguma que queira partilhar connosco?
Na verdade, há cerca de uma década que tenho este contacto com a Cartuxa de Évora, mas também com outros mosteiros. O que lhe posso dizer é que fico sempre muito emocionado com o modo tão delicado como a arquitetura cartusiana é pensada e vivida pelos próprios monges. São espaços absolutamente singulares. Em 2011, conheci um prior dominicano do Convento de La Tourette (França), com formação em psicologia, e que vai, uma vez por ano, à casa mãe da Ordem, a Grande Chartreuse, nos Alpes franceses, num ambiente de grande isolamento, para conversar com os monges, sentir a pulsação da vida em clausura e saber como estão os monges a lidar com esse peso que é fortíssimo. Numa das nossas conversas, confessou-me que ficava sempre muito emocionado com a arquitetura cartusiana e acabou por me dizer mais ou menos isto: “Eu acho que a arquitetura da Cartuxa é muito feminina”. Depois, explicou melhor a afirmação e o sentido que lhe queria dar: era um sentido maternal, uma delicadeza espacial rodeada pela sensibilidade dos próprios monges. Revejo-me nesta visão. A arquitetura cartusiana, onde o espaço e a luz fazem toda a diferença, é extremamente dócil e isso é o que mais me impressiona.