As notícias alarmantes sobre os surtos epidémicos como Ébola, Dengue, Zika e gripe não nos dão descanso. De facto, temos hoje dados que provam que as epidemias não só estão a aumentar em frequência mas, também em alcance. O que antes eram problemas dos outros, que viviam em regiões remotas passam, por circunstâncias várias a ser também um problema nosso.
É fácil perceber que a facilidade de viajar tem, também o reverso da medalha: nós viajamos facilmente mas, obviamente, os vírus também. Em 2014, um surto de Ébola na África Ocidental atravessou rapidamente os Estados Unidos e a Europa e a disseminação global da gripe ocorre anualmente a uma velocidade estonteante. Questiono-me se, sendo possível confinar estas doenças aos países normalmente pobres, o investimento global na procura de soluções terapêuticas teria sido o mesmo? Mas, não é disso que irei falar…
Assim, entendi, que na presença de uma nova crise, eventualmente epidémica, como a que hoje vivemos com o coronavirus, seria interessante, no sentido de preparar eventuais medidas de contingência e mitigação do vírus, perceber quais são as questões éticas específicas nesta área.
De facto, a bioética emerge e desenvolve-se em contextos essencialmente ligados aos cuidados médicos e à investigação em seres humanos, fazendo sobressair uma série de preocupações éticas que, em certas situações, não se adequam ao contexto da saúde pública. De facto, é inegável que toda a área dos cuidados de saúde e da investigação biomédica atribui enorme importância ao princípio da autonomia, importância que, porque falamos de populações e não de indivíduos, adquire diferentes contornos em casos de epidemias.
Vejamos as limitações de circulação decretadas na cidade chinesa de Wuhan para perceber que riscos éticos relacionados com a violação da liberdade são suportados pelas pessoas individualmente para, eventualmente, beneficiar outros, o país e/ou o mundo. As intervenções em saúde pública limitam a autonomia de um determinado grupo de indivíduos ou pessoa individual, de forma a proteger a saúde de outro grupo de indivíduos. Assim, é fácil perceber que nesta e na maior parte das áreas da saúde pública em que o foco é a prevenção, endeusar a autonomia teria consequências desastrosas.
Para além das questões anteriormente descritas relacionadas com a autonomia, também a nível da privacidade os programas de contingência para situações epidémicas poderão constituir-se como ameaças a este princípio. As estratégias de vigilância são, no essencial, desenhadas para monitorizar a saúde de determinados grupos populacionais ou pessoas individuais onde a colheita de dados pessoais e identificáveis é obrigatória e incontornável. Ainda neste contexto, a vigilância clínica dos contactos, que muitas vezes é exigido nas estratégias de confinamento de doenças com potencial epidémico, coloca problemas adicionais a nível da privacidade e da confidencialidade uma vez que tornam identificáveis não só a pessoa potencialmente doente mas, também a sua rede de contactos.
Realmente, como já referi anteriormente, se entendermos que a autonomia é um princípio central e inviolável (ver p.e. os recentes projectos de lei sobre a eutanásia) tal entendimento se extensível às questões da saúde pública seria a verdadeira desgraça… O individualismo exacerbado proveniente do liberalismo levaria a sociedade, inevitavelmente a situações insustentáveis. Infeliz exemplo este das epidemias para demostrar que tantas vezes e em tantas circunstâncias o o bem comum (o melhor interesse da sociedade) deve prevalecer sobre o bem individual (melhor interesse do indivíduo).