Em 2002, alguém de fora aventurar-se até à Quinta do Mocho, um bairro de Loures visto como gueto problemático, era quase impensável. Mas escassos meses depois de deixar de ser primeiro-ministro do país, António Guterres começou discretamente a frequentar o bairro para dar explicações de Matemática a um grupo de jovens estudantes do 12º ano.
“Os miúdos sabiam quem ele era e achavam curioso, porque achavam que os políticos só vinham ao bairro ou só apareciam na altura das eleições. Foi uma surpresa”, recorda Lurdes Gonçalves, directora da Start Social, uma instituição polivalente de intervenção social e que trabalha com os jovens do bairro desde o início.
Quem chega de fora e entra na urbanização da Quinta do Mocho não pode deixar de sentir-se um estranho a invadir uma comunidade muito própria. Os prédios altos em betão delimitam as ruas largas e as palmeiras as que pontuam são a única quebra na geometria precisa do bairro que nasceu em 2000 para realojar cinco mil pessoas que viviam em condições precárias num bairro que alojava, principalmente, cidadãos vindos das antigas colónias africanas.
Mas se o estigma era grande, e o bairro conhecido por rixas e desacatos, hoje o destaque vai para os coloridos murais de arte urbana que decoram cada quarteirão e que convidam os forasteiros a passar nas ruas como quem passeia numa galeria a céu aberto.
Isso é hoje. Há 14 anos, quando um amigo de Isaías Trindade lhe disse que o engenheiro António Guterres, que esta quinta-feira será oficializado como próximo secretário-geral da ONU, andava a dar explicações no bairro, o jovem estudante de 25 anos ficou surpreendido.
“O que é que uma figura pública estaria ali a fazer, ainda por cima de forma gratuita”?”, questionou-se. Mas aproveitou, e passou a fazer parte do grupo de cerca de oito alunos que se encontrava duas vezes por semana com o engenheiro para receber um “empurrão” a Matemática.
“Todo o mundo sabia quem era o Guterres, não passava despercebido”, lembra Isaías. A intenção do “professor”, no entanto, não era essa, tanto que nem permitiu o registo fotográfico das aulas. Chegava à noite, no seu carro, e entrava discretamente ou na sala da paróquia, às quartas, ou na Casa de Cultura de Sacavém, aos sábados, onde os alunos já o esperavam.
“E os miúdos saíam de lá radiantes”, garante Lurdes Gonçalves. Promotora de iniciativas como o “Projecto Esperança” ou o “Cuidar o Mocho” e directora de uma cooperativa que inclui ATL, creches e actividades para jovens dos seis aos 30 anos, é com orgulho que fala dos projectos desenvolvidos no bairro. Não esconde a admiração ao recordar a passagem de Guterres e da sua “atitude de voluntário”.
“Ele encarou isto como uma tarefa pessoal”, frisa. “O voluntário quando vai para ajudar não é para ser reconhecido. É apenas para deixar a sua marca e saber que fez o que sabe fazer de melhor.”
O empurrão de Guterres
As salas onde se desenvolvem as actividades do “Projecto Esperança” são assinaladas da rua pelo verde vivo da montra onde se lê: “Spot do Mocho – Benvindo!”. Aqui passam mais de 40 crianças e jovens para fazerem trabalhos de casa, pesquisas para a escola, organizar actividades desportivas e até “workshops” de empreendedorismo, como o “Empower Jovem”, um projecto que tenta aproveitar as suas ideias para pensar planos de negócio. A dança e a música também entram, claro – e a música é fundamental no trabalho com estes jovens.
DJ Marfox, estrela mundial do kuduro, é um dos “filhos” que o Mocho exibe com vaidade e que serve de inspiração para os aspirantes mais novos, como o é Carlos Mané e outros para os miúdos que sonham ser jogadores de futebol.
Conhecido como Underword no seu projecto de rap cristão, a música foi também um ponto de contacto para Isaías Trindade, que ajudou a dinamizar “workshops” com a associação. Como "rapper", Isaías já homenageou Guterres numa das suas letras.
No átrio luzidio do escritório onde trabalha actualmente em Carnaxide, como técnico de electrónica, recorda as aulas com Guterres como um “estímulo” para um grupo de jovens que já de si aspirava a mais altos voos. “Os jovens que lá estavam a ter explicações tinham sonhos e tinham traçado um objectivo. Era difícil para alguns lá chegarem por si próprios, e o engenheiro Guterres foi, naquela altura, alguém que deu um empurrão”, afirma.
“Eu sempre fui um bom aluno a Matemática, mas as situações da vida, viver num bairro, as situações económicas…Isso prejudicou um bocado”, admite. E Isaías conta-se como um dos sortudos, porque tinha uma vida familiar estável, de “princípios”.
Uma das questões mais preocupantes para quem intervém na Quinta do Mocho é o aumento “assustador” da pobreza infantil e a consequente subida no abandono escolar. A directora da “Start Social” caracteriza o bairro como um local em que o desemprego é transversal e onde é visível o desânimo de muitos jovens com a escola.
A comunidade vivia muito da construção civil, no caso dos homens, e da limpeza, no das mulheres, e a crise veio agravar uma situação já precária. Muitos pais emigram para Inglaterra, e outros países, à procura de emprego, e muitos jovens acabam por abandonar a escola e segui-los.
Por isso, o tempo dedicado voluntariamente ao bairro por alguém como António Guterres pode ser tão fundamental. “É uma forma de saírem deste ciclo viciosa da pobreza e da exclusão social”, diz Lurdes Gonçalves. “Tudo o que são exemplos positivos de pessoas que conseguiram passar e triunfar, são os que queremos trazer para esta geração actual”.
Ver o coração de Guterres
Isaías tem 37 anos e ainda hoje hesita em dizer aos colegas que vem da Quinta do Mocho.
Não nega que as aulas com António Guterres o marcaram e admite que nunca pensou ver alguém daquela estatura a passar tempo no bairro. “Ele fez de uma forma sigilosa. Quis mesmo ajudar, não estava preocupado com o impacto que isso iria ter, estava mesmo numa de apoiar e servir.” “Os políticos podem fazer boas acções, mas de maneira diferente…ou porque têm algum interesse… O engenheiro Guterres.. eu comecei a ver o coração dele”, diz.
Como professor, também surpreendeu. “Às tantas já não olhávamos para ele como político ou figura pública, ele era tão à vontade connosco, falava de uma forma tão natural, tão normal – tratávamo-nos todos por tu, isso ligou-nos muito e deixou-nos muito à vontade”. As explicações passavam entre risos e brincadeiras. “O ambiente era muito bom”.
A maioria dos jovens do grupo conseguiu fazer o exame de Matemática com sucesso e muitos entraram no ensino superior. Alguns estão em Portugal com cargos profissionais de relevo, há médicos, enfermeiros, uns em entidades públicas, outros em grandes empresas. Outros emigraram.
Para alguns, diz Isaías, a ajuda não se limitou às explicações. Os alunos da Quinta do Mocho ficaram com o contacto directo de António Guterres e, quando precisaram de ajuda noutras situações, foi-lhes dada.
E há quem tenha pena de não ter aproveitado. Um jovem, que optou antes pelo futebol, confessou a Lurdes Gonçalves estar “extremamente arrependido”. Entre risos, a directora conta o desabafo: “Ele dizia-me: ‘Agora que acabei o futebol, fazia-me tanta falta ter tirado o curso!’”.
A homenagem de um bairro mudado
Se “antigamente” havia rixas todas as semanas e a má fama era cartão-de-visita do Mocho, hoje, o bairro está mudado, defende Isaías Trindade. A arte urbana ajuda a quebrar imagens feitas e a convidar o olhar de fora e as entidades no terreno, como as associações, cooperativas e a Câmara de Loures, trabalham para aproveitar a onda positiva gerada pelos murais.
O “Projecto Esperança” e a Start Social querem também explorar esta vaga para organizar uma homenagem a António Guterres no bairro antes da sua partida para os Estados Unidos para assumir o cargo na ONU, em Janeiro de 2017. Contactaram ex-alunos, que quiserem de imediato participar, e a comunidade vai juntar-se no reconhecimento ao seu trabalho.
Lurdes Gonçalves não tem dúvidas de que Guterres estará à altura do novo cargo e afirma que “tem tudo para dar certo”. O impacto na Quinta do Mocho, esse, considera inegável. “Eu não sei se ele vai conseguir fazer um mundo melhor, mas aqui ele fez a vida de vários jovens melhor.”
Isaías pensa nas mesmas linhas e diz mais: “O que se ensina hoje nas escolas dificilmente vai ajudar a uma pessoa a ter um sonho, uma personalidade recta. É o materialismo, é a sobrevivência, é o dinheiro, é a corrida; esquecem-se que há outras coisas, há valores, há pessoas que precisam de ajuda, que não têm a mesma pedalada que nós.”
“Neste caso”, conclui, “o Guterres fez a diferença. Alguém que estava lá no topo foi a um bairro e encontrou um grupo de jovens que tinha um sonho. Ele deu o empurrão.”