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Filipe Santos é diretor da Católica Lisbon há pouco mais de um ano e, nos últimos dois meses, devido à pandemia de Covid-19, viu o ensino à distância dar o salto que todos tentavam há décadas. No ensino, no teletrabalho e no comércio digital antecipa que nada voltará a ser como era. Mas tem dúvidas sobre se o mundo caminha para uma nova economia mais ao jeito do Papa Francisco.
Qual é o maior desafio que esta pandemia coloca à economia?
O maior desafio que esta pandemia traz à economia, tanto portuguesa como a nível europeu, é o facto de ter forçado uma paragem da maior parte da atividade económica, em particular do consumo, durante talvez dois meses, o que leva a uma enorme perda de valor por parte das empresas e perda de rendimento por parte dos consumidores.
Se nós, simplesmente, conseguirmos carregar no botão e, gradualmente, voltarmos, o impacto na economia é menor, desde que se evite uma coisa que os economistas dizem que é espiral recessiva. O que é que é espiral recessiva? É quando esta perda de rendimento das empresas leva a falência das empresas, essas falências levam a desemprego, o desemprego leva a pessimismo e a menor consumo e, de repente, o que era um choque específico e limitado no tempo torna-se um impacto nas economias.
No fundo, vamos ter de combinar aqui abertura da economia com uma necessidade de grande confiança, é isso?
Vamos enfrentar um grande problema de confiança em particular se não forem tomadas atitudes muito agressivas dos governos, a nível português e da Europa, em apoiar a economia e em particular a apoiar as empresas, porque se se apoiar as empresas, elas mantêm o emprego, se mantiverem o emprego os consumidores não perdem tanto poder de compra e, portanto, há um sentimento de retoma bastante mais rápido.
E quais devem ser essas medidas agressivas de que fala?
Eu acho que, de certa forma, o quadro de medidas que tem sido tomado em Portugal é adequado. Pecou, talvez, por ligeiro atraso de algumas semanas ou talvez por alguma burocracia inicial, mas neste momento a medida principal e que está em curso é medida de “lay-off” temporário e é uma boa medida porque, no fundo, reduz muito o custo das empresas em manter a sua força de trabalho durante estes meses para que não se perca a capacidade produtiva na retoma. Essa é uma boa medida e agora está a ser bem implementada. Há também o subsídio extraordinário para a retoma, que vai ser dado a todas as empresas em dificuldades para retomar atividade a partir do momento em que seja possível retomar, que penso que será maio/junho. Penso que é de 635 € por empregado e isso também é uma boa medida.
Houve aqui uma falta de liquidez inicial porque toda a gente foi surpreendida por esta situação e, portanto, talvez devesse ter havido um apoio mais imediato do Governo, com a devolução de alguns impostos por exemplo. A TSU que as empresas pagaram em janeiro/fevereiro podia ser devolvida e paga mais tarde, o que dava uma injeção de liquidez. Podia ter-se agido mais cedo, mas no global as medidas estão a ir na direção adequada, exceto eventualmente a questão das linhas de crédito que demoram algum tempo a ter efeito. São mais úteis para ajudar a relançar quando a incerteza se reduzir. Ninguém se vai endividar na incerteza de que vai haver retoma e as linhas de crédito colocam muito risco nos bancos, muitos riscos nas famílias que têm, por vezes, de dar garantias pessoais para estes empréstimos.
Agora, o grande desafio da economia portuguesa é que o endividamento já era elevado quando começámos a crise, tanto a nível das empresas e famílias, como a nível do setor público. O apoio que o Estado tem dado tem sido bem desenhado, mas a “bazuca” não é tão grande comparada com outros países com maior capacidade e endividamento menor.
Como temos também familiais e empresas menos capitalizadas e com menos poupanças, esta perda de rendimento pode levar a situações complicadas de empresas e famílias. Daí as moratórias, que têm sido implementadas, que acho que vão no bom sentido, mas que acabam por prolongar a crise, porque a moratória é “não pago agora, pago mais tarde; a pessoa a quem ia pagar agora, também não recebe agora, faz um empréstimo”. Aumenta, eventualmente, o tempo que demora a resolver.
Uma das dúvidas é se as empresas vão sair do “lay-off” para a atividade ou se muitas podem sair do “lay-off” para o desemprego ...
Sim, há esse risco. Mas a medida é inteligente, o “lay-off” temporário tem depois aquele subsídio extraordinário de retoma de atividade que diz às empresas “se retomar a atividade e não despedir as pessoas tem aqui um extra e este extra é a fundo perdido”.
Se a pandemia acalmar como parece e começar gradualmente a haver uma retoma da atividade económica a partir de maio, a maior parte das empresas pode aguentar-se, exceto aquelas dependentes de um setor que é enormemente afetado que é o turismo.
Tudo o que é ligado ao turismo – aviação, hotelaria, restauração – vai ter um impacto enormíssimo porque não tem estes dois meses de paragem quase total; a paragem é da ordem dos 96% nos hotéis e dos 85% nos restaurantes. Vai haver aqui setores que vão demorar seis meses, nove meses a recuperar, até haver uma vacina ou um bom tratamento e aí vai ter de haver alguma correção económica, algum desemprego que vai ser gerado e vai de haver apoios específicos para esses setores.
Podemos vir a falar de uma nova economia saída desta crise?
Normalmente estas crises acabam por acelerar algumas tendências que já se notavam, mas por inércia ainda eram tímidas. Acho que vai haver, de certa forma, comportamentos económicos diferentes do que existiam. Acho que em algumas áreas, o teletrabalho – as pessoas melhoraram as suas capacidades, aprenderam a trabalhar em plataformas e equipas virtuais – terá maior adoção no futuro, mesmo que a situação estabilize. Isto também reduzirá as idas diárias de carro para o trabalho, algumas viagens de avião, porque mesmo as conferências podem ser virtuais. Aí vai haver uma nova economia talvez um pouco mais sustentável.
Outra área que teve uma enorme progressão é o ensino à distância. Aqui na Católica Lisbon em uma semana começámos a dar todas as aulas online aos alunos de licenciatura e mestrado e os alunos e os professores adaptaram-se muito bem. Era algo que todos tínhamos tentado fazer no ensino superior durante 10 ou 20 anos muito lentamente. Foi feito numa semana porque não havia alternativa.
Aí também não vai haver um retrocesso completo nos comportamentos, tal como no comércio eletrónico, onde também vai haver uma alteração de tendências.
Podemos vir a ter uma economia menos globalizada em que os países voltem a produzir mais produtos próprios. O primeiro-ministro na entrevista que deu no início do mês à Renascença dizia que Portugal não deve estar tão dependente daquilo que compra á China... Acha que isto pode ser uma ideia generalizada?
Acho que há o risco de isso acontecer, mas novamente acho que era uma tendência que se estava a começar a notar nos últimos 5/7 anos. Algumas das políticas populistas e nacionalistas de alguns países importantes, como a América. O conceito de “near shoring”, com as multinacionais a preferirem ter as suas cadeias produtivas perto, na Europa por exemplo e não na Ásia. Por exemplo, as cadeias têxtil estavam a voltar para Portugal em termos de produção para multinacionais como a Zara, depois de terem sido deslocalizadas para a Ásia.
Isto veio acelerar a tendência. Dantes era uma tendência económica e política, agora vai entrar também a questão da segurança, da resiliência das cadeias de valor. Estarmos todos dependentes de um componente específico que é feito num país, dada a incerteza geopolítica que existe isso pode ser um grave risco. Acho que vai haver sim uma tendência para cada grande bloco – Estados Unidos por um lado e União Europeia pelo outro – de tentar ser um pouco mais autossuficiente em algumas áreas. Há um exemplo claro em que a Europa já fez isso que foi na aviação: existia a Boeing e a Europa decidiu que era importante ter uma empresa europeia que produzisse aviões e criou-se a Aibus, com grande sucesso, e o facto de haver um duopólio em vez de um monopólio beneficiou todos.
Acho que essa tendência se vai acelerar e a economia futura arrisca-se a ser menos global e mais em blocos, pensada em termos de cada um dos grandes blocos
Os blocos de que fala serão a Europa, a América e a China?
Sim. São esses três blocos económicos que vão tentar afirmar-se e ganhar influência nos países vizinhos e nas suas cadeias de valor. Infelizmente, a Europa e os Estado Unidos eram um bloco integrado, mas a política atual americana está a levar a uma perda de confiança nessa perspetiva de globalização trazida pelos EUA e, se não houver uma mudança política em novembro, se se mantiver uma administração Trump, acho que os danos serão irreversíveis para a aliança euro-atlântica. Mais cinco anos de política populista norte-americana vai ter danos irreparáveis.
Esses danos irreparáveis de que fala podem ir além da economia?
Acho que vai haver aqui um retomar de uma guerra fria económica, em vez de uma guerra fria militar, que já se tem vindo a notar, com a influência da China em alguns apaises africanos trazendo denegri fácil, por um lado, ou comprando empresas noutros países. A Europa já começou a dizer “atenção, não queremos que outros países fora da Europa comprem as nossas empresas a preço de saldo”. Quando se perde a confiança, é difícil de retomar e corremos o risco de haver aqui um ciclo geopolítico futuro de menor confiança. Acho que era essencial fortalecer as instituições internacionais: as Nações Unidas, a Organização Mundial de Saúde, os bancos de desenvolvimento, mas o que estamos a ver é um bocadinho o contrário, é a tentativa de minar as organizações internacionais ou retirar-lhes o financiamento, exatamente para dar mais força a cada estado ou a cada bloco em vez de dar mais força ao multilateralismos que seria fundamental no futuro para a humanidade.
E acha que o bloco europeu vai conseguir dar resposta a este desafio?
Era importantíssimo que conseguisse, mas tenho algumas dúvidas. A Europa nunca faz o que se espera e, no último momento, encontra uma solução que remenda o problema e mantem as coisas unidas. Parece que a Europa vai-se integrando com medidas tomas em momentos de crise, à beira do abismo, porque antes disso não há capacidade de tomar essas decisões.A sua área tem muito a ver com empreendedorismo. Os empreendedores são assim como que os mais "castigados" com esta crise ou podem ser até a resposta para o futuro?
Eu acho que os empreendedores atuais são mais castigadas por esta crise do que as empresas mais estabelecidas por várias razões. Muitas vezes os empreendedores estão a oferecer soluções novas para mercados novos e, numa altura de crise profunda, as empresas retraem-se, focam-se no essencial e não compram coisas inovadoras e, por vezes, podem prejudicar o crescimento de certos mercados dos quais dependem os empreendedores. Por um lado, uma empresa quando quer comprar um serviço ou produto numa situação de crise tem receio que o fornecedor vá à falência. Quando o fornecedor é uma pequena start-up diz “se calhar daqui a seis meses não estão cá, mais vale não comprar a eles” e, quando não compram a eles, aumentam a probabilidade de a start-up não estar cá daqui a seis meses.
Por outro lado, os empreendedores dependem de investidores que apoiam o crescimento das empresas e os investidores também são um bocadinho cautelosos nesta fase e podem não apostar tanto nos empreendedores.
Eu acho que este vai ser, digamos, um golpe rude para o setor de empreendedorismo, para os empreendedores atuais. Claro que a situação de crise leva a novos empreendedores porque as pessoas têm de se reinventar, há pequenos negócios que têm de encontrar formas alternativas de vender digitalmente ou fazer alterações aos negócios adaptados ao que o mercado está a pedir.
Ou seja, por um lado, vai haver uma crise que afetará os atuais empreendedores e por outro lado a crise vai levar as pessoas a reinventarem-se e vai levar a uma nova vaga de empreendedorismos, que será diferente em temos de natureza e mais adequada aos desafios da economia.
Depois desta pandemia podemos vir a ter uma economia mais parecida com aquela que o Papa Francisco tem vindo a pedir, com mais respeito pelo ambiente, mais respeito pelo outro e não tanto esta “economia que mata”, como ele costuma chamar?
Essa é uma pergunta difícil. A minha área de investigação é inovação social e a sustentabilidade e trabalho na criação, no âmbito de um modelo de economia liberal capitalista, de um capitalismo mais saudável, mais resiliente, mais amigo das pessoas e do ambiente.
Será que esta crise é o interruptor, o gatilho que vai levar as pessoas a acordar e a procurar o novo modelo económico? Eu gostava de acreditar que sim, mas neste momento não tenho a certeza, porque numa crise as pessoas focam-se mais na sobrevivência da sua família da sua empresa até do seu Estado, e não tanto nas aspirações para um futuro melhor.
No fundo, as pessoas procuram a sobrevivência. Se houver uma rápida recuperação, as pessoas têm grande alívio, uma descompressão, e se calhar voltam alguns comportamentos, digamos, antigos e habituais. Será que isso vai permitir uma descontinuidade? Há fotografias impressionantes do nível de redução de poluição em certas cidades, dos animais... Por vezes, é preciso um choque para nos acordar e para fazer pensar diferente. E existem instituições, hoje em dia, e pessoas como Papa Francisco e muitos outros, que já vêm apelando para esta nova economia há muito tempo e se calhar esta crise, este choque vai dar o maior alento para essas pessoas orientarem o caminho de todos na direção certa.
Não tenho a certeza, mas acho que talvez venham boas coisas desta crise e desta pandemia que nós enfrentamos.